Quando deixou Minas Gerais para trabalhar no leito do Rio Paraná, em Foz do Iguaçu, João de Farias Siqueira já desconfiava que se tratava de um projeto grandioso. Mas hoje, meio século depois, ainda contempla incrédulo o panorama totalmente tomado pelo paredão de 7,7 quilômetros de barragem da Hidrelétrica de Itaipu, obra que ajudou a construir junto a outros 40 mil operários.

O barrageiro, nome dado aos trabalhadores que ergueram a estrutura na fronteira entre Brasil e Paraguai, agora trabalha como monitor na recepção dos turistas. Conta emocionado sobre a façanha inédita no mundo nos anos 1970. “Encontramos um cenário bem diferente. Não tinha nada, aos poucos, fomos erguendo esse gigante. Era muita gente, de todos os lugares. Muitas histórias. Tenho muito orgulho de ter participado disso”, relata Siqueira.

A Itaipu Binacional completa 50 anos de fundação e 40 anos de produção de energia em 2024. Neste período foram gerados mais de 3 bilhões de MWh, energia suficiente para abastecer todo o planeta por 43 dias. A hidrelétrica, com capacidade de 14.000 MW, reinou absoluta como a maior do mundo até 2015, quando foi superada pela Usina de Três Gargantas, na China, que tem produção de 22.440 MW. Hoje, ocupa a terceira posição no ranking, atrás da também chinesa Usina de Baihetan, com 16.000 MW.

Vista da barragem de Itaipu
Vista da barragem de Itaipu | Foto: Celso Felizardo

Com 20 unidades geradoras de potência instalada, Itaipu fornece 10% de toda a energia consumida no país e 88% no Paraguai. A hidrelétrica já chegou a ser responsável por 25% do suprimento energético do Brasil nos anos 1980. À primeira vista, os indicadores podem dar a sensação que a maior hidrelétrica brasileira está perdendo relevância, mas a Binacional garante que não.

Mirante com vista para os vertedouros
Mirante com vista para os vertedouros | Foto: Celso Felizardo

A ampliação de investimentos em energias renováveis como eólica e solar cresceu nos últimos anos, porém essas fontes energéticas têm a característica de serem intermitentes. É preciso haver sol e vento para gerar energia. E quando os fatores climáticos não contribuem, a estabilidade da matriz hidrelétrica ganha força. “Itaipu hoje funciona como uma ‘bateria natural’ do sistema nacional. Ficamos sempre em prontidão e, quando há demanda, estamos prontos a aumentar nossa participação”, explica o diretor técnico Renato Soares Sacramento.

E para ampliar ao máximo a vida útil da usina, que hoje é estimada em aproximadamente 200 anos, a administração binacional trabalha em ações de pesquisa e desenvolvimento, além de investir pesado em sustentabilidade. “A ideia é desenvolver soluções tecnológicas que possam mitigar os efeitos que possam vir a impactar no bom funcionamento da usina, e isso envolve uma série de ações de alta complexidade”, explica Enio Verri, diretor-geral brasileiro da Itaipu.

Entre os dias 23 e 24 de maio, a FOLHA participou de uma visita técnica nas instalações da usina a convite da Itaipu Binacional para conhecer os projetos desenvolvidos no local.

Antigas casas de operários foram aproveitadas na estrutura do Parque Tecnológico de Itaipu
Antigas casas de operários foram aproveitadas na estrutura do Parque Tecnológico de Itaipu | Foto: Celso Felizardo

Parque Tecnológico

O principal braço de pesquisa da Itaipu Binacional é o PTI (Parque Tecnológico Itaipu), um centro de inovação, focado em desenvolvimento tecnológico e científico, empreendedorismo e geração de emprego e renda. Criado em 2003 e gerido pela Fundação Parque Tecnológico Itaipu - Brasil, o PTI funciona nos antigos barracões que serviam de alojamento para os trabalhadores da construção da barragem de Itaipu.

São mais de 100 projetos em desenvolvimento em parceria com empresas, universidades, centros de pesquisa e incubadoras de negócios, que trabalham em conjunto para desenvolver soluções inovadoras para os mais diversos desafios. Parte das soluções desenvolvidas ali é aproveitada na atualização tecnológica da usina, o principal projeto da empresa desde a construção. O investimento é de R$ 3,4 bilhões nos próximos 14 anos.

Unidade de biogás, em Toledo (Oeste)
Unidade de biogás, em Toledo (Oeste) | Foto: Celso Felizardo

Biogás

Entre os projetos tecnológicos que visam a sustentabilidade, alguns estão em fase inicial, mas com avanços significativos, como o hidrogênio verde. Outros já superaram a fase de pesquisa e já começam a galgar escala comercial. Este é o caso do projeto de biogás que gera energia a partir de dejetos da suinocultura, atividade que se destaca o Oeste e Sudoeste do Estado.

A reportagem conheceu a planta industrial da CIBiogás (Centro Internacional de Energias Renováveis) nas proximidades do distrito de Novo Sobradinho, em Toledo (Oeste), maior produtor de suínos do país. A unidade recebe dejetos de 41 mil animais de 15 produtores da região. Na central,inaugurada em outubro do ano passado, esse material é transformado em biogás para geração de energia elétrica suficiente para abastecer 1,5 mil residências de médio porte. Também são produzidos no local 330 metros cúbicos de digestato (biofertilizante), que são distribuídos para os próprios suinocultores e a comunidade em geral.

Dejetos de mais de 40 mil animais são transformados em energia
Dejetos de mais de 40 mil animais são transformados em energia | Foto: Celso Felizardo

O diretor presidente do CIBiogás, Rafael González, destacou que a planta está preparada para receber mais um gerador e dobrar a capacidade de produção. “Temos o pré-sal no litoral brasileiro, mas aqui no Paraná temos também o pré-sal caipira, transformando a nossa proteína animal em energia”, comparou.

De acordo com González, o projeto é tecnologicamente inovador e tem potencial para ser replicado em outras propriedades, transformando-se em solução para diversas demandas dos produtores e da agroindústria da região.

O projeto é uma parceria da Itaipu Binacional, que investiu R$ 19 milhões na iniciativa, com o Parque Tecnológico Itaipu (PTI-Brasil) e o Centro Internacional de Energias Renováveis (CIBiogás), responsável pela implantação e operação da planta. Também apoiam a iniciativa a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar), a Associação Regional de Suinocultores do Oeste (Assuinoeste) e a Prefeitura de Toledo.

Unidade de Hidrogênio Verde desenvolve um dos projetos mais ambiciosos de energia limpa no PTI
Unidade de Hidrogênio Verde desenvolve um dos projetos mais ambiciosos de energia limpa no PTI | Foto: Celso Felizardo

Hidrogênio Verde

Até pouco tempo atrás, imaginar um veículo rodando com “água” como combustível era impensável. Mas, com os avanços tecnológicos, o combustível à base de hidrogênio tornou-se realidade. O desafio agora é dar viabilidade e maior segurança ao projeto.

Eduardo de Miranda, diretor de negócios e empreendedorismo do PTI, observa que o hidrogênio verde é um assunto que “está na moda”, mas destaca que os pesquisadores locais já possuem uma bagagem de mais de 10 anos no tema. “Nossa planta é experimental, então produzimos uma quantidade baixa de hidrogênio, mas fizemos diversos testes com as indústrias, universidades e com as [empresas] parceiras”, comenta.

Como o hidrogênio em seu estado natural é altamente explosivo, os pesquisadores trabalham na transformação do gás em um pó. A ideia é colocar, até o ano que vem, o combustível em boa parte da frota de 40 ônibus que circulam pelas instalações de Itaipu.

“Diferente dos outros combustíveis, a vantagem é que ele não tem carbono, não gera CO2. Quando em operação, todo resíduo liberado pelos veículos será o vapor da água”, explica o pesquisador Adalberto Teógenes Tavares Junior.

Enio Verri destaca o potencial da tecnologia, mas admite que ainda há um caminho grande a percorrer. “Hidrogênio verde é um sonho, há uma grande expectativa. Mas ainda há muito o que ser conquistado, porque a questão é o preço deste produto hoje. Ele é muito caro e não tem demanda para atender em grande escala. Há ainda muito estudo para ser feito”, pondera.

Pesquisas com baterias aumentam a vida útil dos equipamentos, evitando a contaminação do meio ambiente
Pesquisas com baterias aumentam a vida útil dos equipamentos, evitando a contaminação do meio ambiente | Foto: Celso Felizardo

Baterias

Outros projetos também se destacam no PTI, como o desenvolvimento de armazenamento e fornecimento de energia renovável para comunidades isoladas. A iniciativa utiliza o Sistema de Segurança Energética Modular (SSEM), baterias de níquel e cloreto de sódio (NI/NaCI), de segundo uso, oriundas dos veículos elétricos da frota da usina, prolongando assim a vida útil dos equipamentos em um processo mais sustentável.

Uma das primeiras beneficiadas foi a comunidade indígena Baniwa,na fronteira do Brasil com a Colômbia, no Amazonas. Um dos maiores desafios é a logística. A região, de difícil acesso, é cercada por 300 quilômetros de florestas, sem uma única linha de transmissão de energia. A parceria com o Exército Brasileiro é fundamental para que os equipamentos cheguem ao destino.

Agora, os pesquisadores se preparam para enviar uma carga de baterias para o Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade, ponto habitado mais remoto do país, localizado em um arquipélago distante 1.200 quilômetros a leste de Vitória, no Espírito Santo. Tales Jahn, gestor do Centro de Gestão Energética do PTI, explica as adaptações necessárias nos equipamentos. “Na ilha, há uma alta deterioração das baterias em razão da alta salinidade. Então, fizemos as unidades envoltas em uma camada plástica protetora. Também trabalhamos para desenvolver um produto leve, que possa ser carregado por duas pessoas”, conta.

O PTI lançou no final do ano passado o primeiro laboratório com rede 5G privativa do Brasil. Em destaque, Spot, o cão-robô
O PTI lançou no final do ano passado o primeiro laboratório com rede 5G privativa do Brasil. Em destaque, Spot, o cão-robô | Foto: Divulgação

Rede 5G

O PTI lançou no final do ano passado o primeiro laboratório com rede 5G privativa do Brasil, o PTI 5GLab. Foram investidos, por parte da Binacional, R$ 7.906.180,40. O objetivo é transformar o espaço em um celeiro de testes e desenvolvimento de novas tecnologias, como o simpático cão-robô Spot. Durante a apresentação à imprensa, foram demonstradas algumas habilidades do robô, como pegar e soltar uma bolinha com uma garra mecânica. Na realidade industrial, porém, as funções ganham escala que vão muito além da fofurice.

Spot é o primeiro cão-robô autônomo a chegar no Brasil, por meio de uma parceria entre PTI, Petrobrás e ABDI.( Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial). As duas primeiras unidades do robô, conectado à rede 5G, são testadas em áreas críticas e de difícil acesso da Itaipu e da Petrobrás. As pesquisas servirão para, no futuro, utilizar o robô em trabalhos arriscados, para diminuir os riscos operacionais e aumentar a segurança dos trabalhadores.

Diretor-geral brasileiro da Itaipu, Enio Verri, apresenta o programa "Mais que Energia"
Diretor-geral brasileiro da Itaipu, Enio Verri, apresenta o programa "Mais que Energia" | Foto: Celso Felizardo

Programa Mais que Energia marca expansão da área de atuação da Binacional

Como forma de compensação pelos impactos socioambientais provocados pela criação da usina, que exigiu a criação de um lago artificial de 1.350 km2, se estendendo em um fio d’água de 170 km, de Foz do Iguaçu a Guaíra, no lado brasileiro, a Itaipu Binacional já pagou R$ 41 bilhões ao Brasil, sendo 35 milhões em royalties.

Início do reservatório de Itaipu, que começa em Foz e se estende por 170 quilômetros, até Guaíra.
Início do reservatório de Itaipu, que começa em Foz e se estende por 170 quilômetros, até Guaíra. | Foto: Celso Felizardo

Tradicionalmente, os municípios lindeiros do Lago Itaipú recebem as maiores fatias, por serem os mais impactados pelo alagamento. A nova direção brasileira, no entanto, trabalha a visão de ampliar sua área de atuação. De acordo com o diretor-geral brasileiro Enio Verri, a água é a matéria-prima da usina. Desta forma, todos os municípios que estão conectados com a bacia do Rio Paraná estão estrategicamente dentro da área de atuação de Itaipu. “Nossa intenção é desenvolver programas de sustentabilidade e conscientização expandidos, para assim evitar assoreamento e prolongar a vida útil da usina”, argumenta.

A principal vitrine dessa nova fase, que segundo Verri, atende às diretrizes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), é o programa Itaipu Mais que Energia. O programa lançado no ano passado prevê a distribuição de R$ 1 bilhão em apoio a projetos sociais, ambientais e de infraestrutura para todos os 399 municípios do Paraná e 35 do Mato Grosso do Sul.

O projeto foi acusado de ser eleitoreiro pela oposição, que não poupou críticas ao que consideram mais uma das “gastanças” de Lula. Enio Verri rebate. “Investir em sustentabilidade não é gasto. As tragédias climáticas estão aí para nos lembrar. Itaipu vai assumir esse protagonismo no país, porque é uma empresa binacional. Ela também é de todo o Brasil”, defende.

Enio Verri, que renunciou ao terceiro mandato como deputado federal pelo PT para assumir a direção-geral brasileira de Itaipu, detalha este novo olhar da Binacional. “Vamos manter o foco na sustentabilidade do Oeste Paranaense, depois o Paraná, os outros estados próximos e, assim, abrindo o leque para as outras unidades da federação. Nesta ordem”.

Uma das ações recentes de caráter nacional da Itaipu é o investimento de R$ 1,3 bilhão para melhoria da infraestrutura de Belém, capital do Pará. A cidade vai ser sede da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30), em 2025. Foi assinado ainda um convênio no valor de R$ 41,8 milhões envolvendo a Itaipu, o Parque Tecnológico Itaipu (PTI), a prefeitura de Belém e a Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa (Fadesp), para o desenvolvimento de metodologia para a gestão de resíduos sólidos, ações de educação ambiental e de inovação em biotecnologia.

Enio Verri disse que o investimento representa o compromisso da Itaipu Binacional com a sustentabilidade, “Hoje, mais do que nunca, reconhecemos a urgência em intensificar nossos esforços diante dos desafios impostos pelas mudanças climáticas. É evidente que chegou o momento de agir, e como líderes no setor energético, temos o dever de liderar esse movimento em direção a um futuro mais sustentável”.

Vista geral da usina, com o Rio Paraná ao fundo
Vista geral da usina, com o Rio Paraná ao fundo | Foto: Celso Felizardo

Acordo com Paraguai mantém tarifa congelada até o fim de 2026

No início de maio, Brasil e Paraguai chegaram a um acordo sobre o valor da tarifa de energia de Itaipu. O Custo Unitário dos Serviços de Eletricidade, que era de US$ 16,71 KW mês, passará a ser de US$ 19,28 até o final de 2026. Do lado brasileiro, no entanto, a tarifa será mantida em US$ 16,71, viabilizando o valor final de venda pela Aneel (R$ 205 MWh).

Como essa tarifa é definida pelos dois países, o Brasil vai abrir mão de US$ 300 milhões por ano para manter as tarifas no antigo valor. Na prática, consumidores do Sul, Sudeste e Centro-Oeste não terão reajustes na tarifa elétrica até o final de 2026.

O diretor-geral brasileiro da Itaipu, Enio Verri, disse que o acordo sobre a tarifa de energia anunciado no início de maio pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, é benéfico para o consumidor brasileiro, ao não permitir reajustes nos próximos três anos e prever reduções tarifárias a partir de 2027. O acerto foi divulgado após reunião do ministro Alexandre Silveira e técnicos do ministério, em Assunção, com o presidente do Paraguai, Santiago Peña.

"O Paraguai obteve algum aumento, mas esse aumento será financiado pelo caixa de Itaipu, portanto, a população brasileira não terá que pagar por essa tarifa", explica Verri.

Visitantes podem conferir funcionamento da usina de perto
Visitantes podem conferir funcionamento da usina de perto | Foto: Celso Felizardo

Após 2026, os cálculos para definição da tarifa de Itaipu irão considerar apenas os custos operacionais da usina. Também será liberada a energia excedente do lado paraguaio de Itaipu para ser comercializada no mercado livre brasileiro, gerando competição de preços. A negociação do Anexo C do Tratado de Itaipu, programada para ser concluída e apresentada ao Congresso até 31 de dezembro de 2024, será antecipada.

Enio Verri chamou a atenção para um ponto do acordo que poderá ter impacto positivo ainda neste ano: será permitida, imediatamente, a venda da energia gerada por outras usinas paraguaias no mercado brasileiro, conforme procedimento já utilizado para Argentina e Uruguai. “Isso vai aumentar a oferta para as indústrias brasileiras e, consequentemente, baixar o preço da energia.”

Segundo Itaipu, a tarifa da usina hidrelétrica, pertencente em condomínio ao Brasil e ao Paraguai, tem o terceiro menor valor entre os contratos de aquisição de energia formalizado pelas 31 distribuidoras cotistas das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Apenas usinas de cotas da Lei 12.783/13 e as usinas do complexo Madeira e Belo Monte, no Norte do País, têm preços menores que Itaipu (12,9%).

Painel de controle digital faz parte das ações de modernização da hidrelétrica
Painel de controle digital faz parte das ações de modernização da hidrelétrica | Foto: Celso Felizardo

Levando em conta os recentes processos de Reajuste Tarifário Anual, conduzidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o valor da energia de Itaipu é de R$ 204,95/MWh, com queda de 26% nos últimos dois anos, segundo levantamento apresentado pela Diretoria Financeira da empresa.

Questionado pela reportagem se os US$ 300 milhões anuais que Itaipu abre mão para manter a tarifa congelada impactaria o “Mais que Energia”, Verri disse que o programa não será atingido. “Vamos continuar com as ações socioambientais, será nosso legado para as futuras gerações”.

*O jornalista viajou a Foz do Iguaçu a convite da Itaipu Binacional