Curitiba - Sem uma base sólida na Câmara dos Deputados e sem margem de manobra para condicionar o apoio em votações à liberação de emendas parlamentares, o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda busca um equilíbrio em sua relação com o Legislativo. Apesar de 12 partidos terem representação nos ministérios, o governo ainda conseguiu formar uma barreira para impedir a tramitação de “pautas-bomba” ou garantir a aprovação de projetos considerados essenciais.

A origem dessa nova forma de relação entre Executivo e Legislativo remonta a 2015, quando a Câmara era presidida pelo ex-deputado Eduardo Cunha (RJ). Naquele ano, uma Emenda Constitucional criou as emendas individuais impositivas, de pagamento obrigatório, o que não depende de liberação por parte do governo. Com o isso, os deputados garantiram verbas do orçamento para aplicar em seus redutos eleitorais e o governo perdeu força em negociações com os deputados.

Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), novas alterações deram origem ao chamado “orçamento secreto”: as emendas omitiam os nomes dos parlamentares e a liberação das verbas dependia apenas da assinatura do relator da proposta. O governo perdeu o controle sobre o orçamento, mas não enfrentou problemas na Câmara. O orçamento secreto foi declarado inconstitucional em dezembro de 2022 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Com dificuldades para formar uma base em seu terceiro mandato, Lula vem tentando estabelecer uma nova relação com a Câmara. “Se o Bolsonaro tivesse ganhado em 2022, teria uma maioria mais confortável. Isso exige mais habilidade política do Lula do que do Bolsonaro”, diz o cientista político e professor da UFPR (Universidade Federal do Paraná), Rodrigo Horochovski.

“O governo não tem margem de manobra. Antigamente o governo tinha um controle mais estreito sobre as emendas e podia jogar isso. Isso se perdeu, a negociação agora é mais no varejo. Tanto que o governo tem uma interlocução mais constante do que os governos anteriores", acrescenta.

'PRESIDENTE INDEPENDENTE'

Cientista político e professor da Uninter, Luiz Domingos Costa aponta outra mudança: antes, os presidentes do Legislativo eram alinhados ao presidente, o que não ocorre mais.

“O deputado sabe que a emenda vai ser executada. O mais provável é ter presidentes independentes”, afirma. “Hoje, um orçamento entre R$ 40 bilhões e R$ 50 bilhões está nas mãos do Legislativo. É muita coisa, chega a ser 20% das verbas à disposição para gastos, que não é a verba para despesa fixa”. A situação, segundo Costa, foi agravada por duas Emendas Constitucionais de 201i que tonaram obrigatório o pagamento de emendas de bancada.

Para o deputado oposicionista Filipe Barros (PL-PR), a relação entre Executivo e Legislativo deve piorar. “A relação do governo com o Parlamento é a pior possível. O que aconteceu nos últimos anos foi um protagonismo do Legislativo e o PT não é acostumado a tratar com o Parlamento dessa maneira”, diz o deputado. “A tendência é piorar, pelo que estamos vendo há uma crise econômica que se avizinha e o governo está cortando, não dos banqueiros, mas cortando benefícios sociais dos pobres”.

POLÍTICAS PÚBLICAS

Na semana passada, a Comissão de Integração Nacional da Câmara destinou a Alagoas, estado do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, cerca de um terço de R$ 1,1 bilhão do orçamento destinado ao pagamento de emendas.

As emendas de comissão foram criadas depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional o chamado “orçamento secreto”, adotado durante o governo de Jair Bolsonaro. O governo de Alagoas e prefeituras do estado vão receber R$ 320 milhões do total, valor que supera o volume destinado a 19 estados.

Neste sentido, as emendas parlamentares podem enfraquecer políticas de governo, já que o orçamento fica pulverizado, sem levar em conta o planejamento feito pelos ministérios, e a distribuição das verbas depende do comando da Câmara.

Dados do Fundo Nacional de Saúde mostram que, neste ano, Alagoas já recebeu R$ 450 milhões por meio de emendas de comissão para a área da saúde, maior valor entre os estados da Federação.

“Isso é um problema grave, porque não há um plano, a aplicação dos recursos segue a orientação e a demanda da localidade que tem contato com o deputado”, diz o cientista político Luiz Domingos Costa. “Não tem como ter uma política nacional se você tira o orçamento de políticas planejadas. Uma viatura em uma cidade pode ajudar, mas uma política de segurança pública envolve inteligência”.

DIFICULTA FISCALIZAÇÃO

Outro problema é a possibilidade de corrupção, já que os recursos ficam pulverizados, o que dificulta a fiscalização. “É uma verba difícil de identificar. Há possibilidade de uma corrupção diferente da investigada pela Lava jato, com grandes contratos. É uma corrupção mais fragmentada”, afirma Costa.

“O estado perde eficiência e faz políticas muito amparadas no clientelismo, coisa que o que não convém por exemplo ao Ministério da Saúde, responsável pelas campanhas de vacinação em todo o país”.

NOVO PRESIDENTE

A Câmara dos Deputados terá um novo presidente a partir de fevereiro de 2025, mas isso não deverá alterar a relação entre os poderes Legislativo e Executivo. A tendência é que o atual presidente, Arthur Lira (PP-AL), consiga eleger seu indicado, o deputado Elmar Nascimento (União Brasil-BA), e mantenha o controle sobre a pauta de votações. Lira não poderá concorrer, pois está no seu segundo mandato.

“O Lula queria achar alguém menos chantagista que o Arthur Lira, alguém do centrão, grupo que é o fiel da balança e vai conseguir eleger o seu representante. Mas, quanto mais o tempo passa, essa possibilidade fica mais distante”, diz o cientista político Luiz Domingos Costa. “O Arthur Lira percebeu que, se jogar com o campo bolsonarista, tem uma larga vantagem”.

UNIR VOTOS

A discussão do projeto de lei que equipara o aborto após a 22ª de gestação ao homicídio faria parte dessa estratégia para unir os votos bolsonaristas aos do centrão. “Ele (Lira) recuou porque pegou mal, mas pautou e aprovou regime de urgência. Vai ter facilmente uns 100 votos bolsonaristas, mais uns 270 do centrão. O governo tem 130”, afirma Costa. “Lira quer criar uma dependência de vários grupos com ele, ficando como uma espécie de eminência parda, como é o Davi Alcolumbre no Senado”.

O cientista político Rodrigo Horochovski lembra que a eleição na Câmara é secreta, o que diminui a margem de manobra do governo. “Não há como o governo manejar deputados para coloca-los em uma tendência. A Dilma Rousseff tentou fazer isso e perdeu para o Eduardo Cunha. Como o voto é secreto, não há como controlar os deputados. Isso exige um jogo de cintura que o Lula teve na eleição do Lira, viu que era inútil tentar uma alternativa. Teve que se juntar para poder ocupar cargos na mesa, é melhor comporto do que ficar sem nada”.

Na avaliação do deputado Filipe Barros (PL-PR), candidatos que não se alinharem a esse novo momento do Legislativo não terão chance na eleição de fevereiro. “O protagonismo do Parlamento é algo que não volta atrás, independentemente da presidência da Câmara. Foi uma conquista ao longo dos últimos anos e isso não retrocede”, avalia Barros. “Qualquer candidato à presidência da Câmara que não demonstrar estar alinhado com o protagonismo do Parlamento não tem a mínima chance”.