É literalmente patrimonialista o evento transatlântico organizado pelo ministro Gilmar Mendes, a partir do seu instituto lisboeta, com a presença de vários membros da magistratura e alguns altos funcionários públicos e parlamentares brasileiros que se deslocaram para o lado de lá do Atlântico, a fim de participar do convescote, que incluía representantes de empresas que têm contas a acertar com a Justiça brasileira.

A caracterização crítica do evento não é pelo fato em si, mas pela forma em que a sua programação foi desenvolvida, incluindo a participação de funcionários públicos de alta graduação, membros das cortes superiores da magistratura, parlamentares e pessoas que representavam empresas que têm assuntos a resolver com a Justiça e com o Fisco brasileiro. Ora, se é que estamos tratando de um evento com interesses relacionados com o Estado e os seus recursos, aprofundar na questão é algo que interessa aos que se preocupam com a transparência no manejo da coisa pública.

Da forma em que o evento transcorreu, com a significativa presença de altos funcionários do Estado, pode-se concluir que passou pela trilha do patrimonialismo, presente na tendência herdada de Portugal de gerir a nau da nação como posse de família, ou como propriedade particular dos burocratas.

A 12ª edição do Fórum Jurídico de Lisboa, promovido pelo ministro do STF Gilmar Mendes e batizado de 'Gilmarpalooza' pela imprensa, foi criticado pela revista Fórum de Lisboa, que destaca a “orgia de promiscuidade” que caracterizou o evento, em artigo intitulado: “O festival do arranjinho”, de autoria do colunista João Paulo Batalha, um jurisconsulto português especializado em advocacia social, transparência e governança. O artigo foi publicado no dia 3 de julho.

Escreve Batalha, “todos os anos, Lisboa acolhe um encontro de que nunca ouviu falar, mas que é uma autêntica parada de poderes promíscuos. Que diria de um juiz que andasse em almoços, jantares e eventos de charme com empresários que têm processos pendentes junto desse mesmo juiz? Diria provavelmente que é corrupto ou que, no mínimo, estava a violar o seu mais elementar dever de reserva e recato, expondo-se a um conflito de interesses que põe em causa o seu julgamento. E se esse encontro de confraternização e palmadinhas nas costas acontecesse às claras, com datas marcadas e site na Internet, disfarçado apenas pelo véu (aliás, muito transparente) de um evento académico? (…). Bem-vindo ao ‘Fórum de Lisboa’.”

Batalha descreve o Gilmarpalooza como “uma conferência que é, na verdade, uma transumância [migração periódica] de lóbis brasileiros para a capital portuguesa”. “Só na edição deste ano – continua o articulista - estiveram representadas 12 empresas com processos perante o Supremo brasileiro – incluindo um empresário agraciado com uma decisão favorável do juiz Gilmar Mendes no âmbito da Lava Jato. Cá estiveram em Lisboa, a conviver com seis dos 11 juízes do mais alto tribunal brasileiro. (...). Lisboa é, em suma, o palácio de Verão da elite brasileira (…), misturando-se juízes, advogados, governantes e empresários.”

O articulista critica personalidades portuguesas que estiveram presentes na festança, embora admita que várias participaram “por engano”, “sem perceberem que se estão a meter num poço de lóbi descarado”. “Mais avisada devia estar a Faculdade de Direito de Lisboa – frisa o articulista - parceira local da iniciativa (...). Mas não espanta que uma das Faculdades mais endogâmicas do país, complacente (senão cúmplice) com casos de assédio, verdadeira escola de poder (que não necessariamente de Direito) de Portugal se preste a acolher esta obscenidade.”

O colunista ironiza a alegação do anfitrião de que “o Fórum de Lisboa é o Brasil que dá certo”, esclarecendo que “dá certo para ‘todos (os) amigos’, já que a malandragem do Gilmarpalooza é ‘precisamente fazer-se às claras’ ”.

Vergonha para todos os brasileiros e um tapa na cara dos contribuintes, que observamos como altos funcionários públicos não têm o menor remorso em gastar em eventos particulares, no primeiro mundo, pretensamente longe dos holofotes, o dinheiro pago pelo Tesouro (nos seus salários e subsídios), evidentemente com sacrifício de milhões de pagadores de impostos. Uma vergonha nacional! Foram escutadas, nas palestras apresentadas, afirmações como o seguinte "sincericídio" do Ministro Dias Toffoli: “Atravessamos o Oceano para falar 10 minutos”, ou esta outra: “A Constituição de 1988 respondeu a 21 anos de autoritarismo ‘com uma aposta no Judiciário’, instaurando a cultura do trânsito em julgado”.

Ricardo Vélez Rodríguez, professor de filosofia e ex-ministro da Educação

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