‘Vocês existem e são importantes para nós’. Com essa premissa o recém entronado ministro dos Direitos Humanos (Silvio Almeida), no já histórico discurso professado em sua cerimônia de posse, sepultou a goiabeira da divindade, onde tantos buscaram metaforizar o lume do pensamento conservador em lugar da fruta divina – como deveriam ser todos os pomos – da inclusão.

Silvio Almeida é negro, advogado, filósofo e, principalmente, filho do Barbosinha que, nos anos sessenta, honrou o gol do Timão. Silvio é, de berço, filho da necessidade de visibilidade e respeito.

Lembro de Silvio Almeida participando de um programa na TV Bandeirantes onde, em um bate papo com o jornalista Milton Neves, ao falar de seu pai goleiro, estabeleceu cirúrgico entendimento: "É como se as pessoas sempre estivessem olhando para você esperando que você cumpra a sua sina. Ou seja, que você falhe. Porque o goleiro deve ter uma coisa que as pessoas geralmente não associam ao negro. E isso é racismo. Que é a confiança. Sempre há uma desconfiança".

O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida
O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida | Foto: José Cruz/Agência Brasil

É a partir da visão precisa de Silvio que os Direitos Humanos tornam à pauta no Brasil, congelados que estiveram pelos últimos sete anos. Assim, as observações ofensivas e ignaras (‘a questão do negro no Brasil é muito mimimi’) saem de cena, dando lugar a constatação de nossa necessidade primeva: eliminar o racismo de nossas relações.

Deveras, quando Lula assumiu e professou seu também já histórico discurso de posse, por óbvio que as pautas foram divididas e concentradas no entorno do conjunto de nossas enormes e múltiplas dificuldades e necessidades.

Há questões tão urgentes que não consigo estabelecer uma ordem de grandeza – até porque todas as questões importam. Ocorre, todavia, que para este que vos importuna por aqui, o combate ao racismo é, dentre todas as outras pautas, a mais urgente, na medida em que demarca mais de quatro séculos de existência.

Noves fora minhas impressões, é de Silvio Almeida que pretendo falar aqui, não da miséria humana que é o racismo – a mais abjeta de nossas disfunções cristãs, na medida em que o filho de Deus jamais foi loiro de olhos azuis (essa constatação exige do circunstante mais de dois neurônios e conhecimento simplório de história e geografia), conquanto nascido em Belém, na Judeia, sua pele escura é mais do que uma certeza moral; trata-se de uma constatação racial que, ao ser desconsiderada, demarca o profundo racismo do pensamento ocidental.

Séculos de exploração não se diluem em um discurso de posse, bem o sei. Mas que dão uma ducha forte na sujeira que a distopia e seu multiverso perverso patético permitiram, há isso dá.

Silvio chega ao ministério mais importante dos ministérios com a missão que seu pai, o grande Barbosinha (que jogou com Oswaldo Cunha, Ditão e Bataglia; Dino e Maciel; Prado, Silvio Major, Clóvis, Rivelino e Gilson Porto) travou nos anos sessenta: defender a toda evidência a árvore da vida.

Não que a baliza Corinthiana seja a árvore da vida propriamente dita (penso que seja a árvore do universo, mas esse é um papo para outras pelejas), mas sua cor, que é a de seu filho, dão a medida de nossa desmedida: quantos ministros negros temos? De ministros a goleiros, negros sempre são minoria e, ser minoria no Brasil, é quase que uma equação de morte.

Se Barbosa (o grande arqueiro negro da seleção vice campeã de 1950) fosse branco, aquele gol antológico do Uruguaio Gigghia seria lembrado enquanto falha sua até hoje?

E, se a questão racial não fosse viva entre nós, haveria alguém a considerar com tanta ênfase Taffarel melhor que Dida? Taffarel poderia até ser melhor, mas a distinção da cor sempre lhe favoreceu, naquilo que Dida é negro – disso não tenho qualquer dúvida.

Jogo da vida à parte, no tabuleiro dos direitos humanos, espero muito de Silvio Almeida. Ele será o centroavante de uma mudança que não se pode mais adiar, suposto que a maior pauta da esquerda, hoje, não é a inclusão per si, e sim a inclusão que é antirracista, na medida em que incluir, hoje, não se basta em inserir em contexto tal, mas sim lutar à morte contra práticas racistas que diminuem nossas circunstâncias, ao tempo em que esgarçam nossa maledicência.

Sei que há muita gente se incomodando com que este pequeno escriba esgrime por aqui, mas não vou desviar do foco que Silvio Almeida traçou: "Vocês existem e são importantes para nós". E, se não for assim, troquem de igreja (qualquer que seja a matriz religiosa) e busquem por padres e pastores de verdade, cujo enfoque é antirracista e não passador de pano.

Não sendo assim, troquem de mercado, troquem de bar, de restaurante, de emprego, de casa, de comunidade. Troquem de esposa e marido. Troquem de amigos, de conhecidos. Troquem de jornais, de revistas.

Eduquem melhor (para não ter que trocar) os filhos e, por favor: não leiam autoajuda – isso é uma metáfora de imbecilização que só racista merece, se é que racista merece qualquer coisa que não desprezo e a lata de lixo da história. Literatura é Machado, Camões, Drumond, Pessoa, Clarice, Florbela, Silvia Plath...

Ler é viver, conhecer, descobrir. Assim, ao buscar conhecimento, o homem se liberta dos grilhões históricos que prendem a questão racial ao mais profundo de nosso inconsciente e persiste a explorar uma cor em detrimento da vida. Viver é conviver e conviver é amar (saudade Pai!).

Ave Silvio Almeida! Os que anseiam viver em plenitude lhe saúdam e aguardam uma forte consideração antirracista na pasta dos Direitos Humanos.

João dos Santos Gomes Filho, advogado

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