O empresário e apresentador Silvio Santos é uma das principais referências nacionais de sucesso. Iniciou sua trajetória como simples camelô vendendo bugigangas em feiras populares do Rio de Janeiro. Em uma ascensão meteórica transformou-se num dos mais prósperos empresários brasileiros, proprietário de uma rede nacional de televisão e de um diversificado complexo empresarial.

Histórias como esta fazem parte da cultura popular brasileira e são usadas para exaltar as virtudes do trabalho árduo e disciplinado como receituário infalível para o êxito. São narrativas propícias para legitimar o modelo capitalista vigente, passando a sedutora ideia de que as oportunidades estão aí para qualquer um que as saiba aproveitar. Essa perspectiva vem reificar o sistema de livre mercado, entendendo-o como autossuficiente, justo e prodigo na distribuição de oportunidades.

Trajetórias como a de Silvio Santos são exceções, pontos fora da curva que não são reproduzíveis por simples ato de vontade individual. Trata-se de resíduo estatístico, haja visto que milhões seguem receituário semelhante, sem conseguirem ultrapassar as fronteiras da pobreza. O problema é ainda maior quando é incorporado pelos grupos subalternos, que em vez de compreenderem a sua realidade como resultado de injustiças históricas que produzem oportunidades assimétricas, interiorizam a culpa e a ideia de inferioridade, o que corrobora com os próprios opressores.

Uma reflexão mais acurada compreende que uma sociedade desejável não pode ser construída em torno de exceções, pois são aleatórias e não se repetem. Vale ressaltar que de acordo com um estudo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), considerando as condições estruturais vigentes, o brasileiro que está entre os 10% mais pobres da população levaria nove gerações, quase 200 anos, para atingir a classe média (só superado pela Colômbia), enquanto um dinamarquês precisa de apenas duas gerações.

Vive-se uma ideia de “meritocracia” seletiva. Enquanto aqueles que ocupam os estratos inferiores são culpabilizados pela própria situação, taxados de incompetentes, indolentes e pouco inclinados ao trabalho, ou seja, têm o que merecem. Paradoxalmente, ninguém questiona se há ou não mérito naqueles que ocupam os estratos superiores, boa parte herdeiros profissionais isentos de qualquer comprovação de competência.

Caso houvesse uma disputa em que todos partissem do mesmo ponto, certamente os resultados seriam muito diferentes. Isso deixa claro que, na prática, o modelo meritocrático vigente serve para encobrir estruturas iniquas que perpetuam o status quo e mantém os privilégios de alguns poucos.

Qual é então a razão de elegermos um modelo socioeconômico particularmente egocêntrico e excludente, em que para uns ganharem outros têm que perder, e quanto maior o número de perdedores maior o status dos vitoriosos? Ao se defenderem cegamente os fundamentos da meritocracia liberal como mecanismo de justiça, naturalizam-se as estruturas que historicamente reproduzem iniquidades e condenam a maioria da população a condições aviltantes de pobreza e subserviência.

Em vez de criar hierarquias e formas de nos distanciarmos uns dos outros, a principal missão da sociedade não deveria estar centrada em aprimorar o nosso processo de humanização? Tendo como maior valor a solidariedade e a busca do bem-comum, de forma a que todos pudessem desfrutar das benesses do desenvolvimento, que é sempre resultado de um esforço coletivo inter e intrageracional?

Vale a reflexão da pedagoga Maria Montessori: “As pessoas educam para a competição e esse é o princípio de qualquer guerra. Quando educamos para cooperarmos e sermos solidários uns com os outros, nesse dia estaremos educando para a paz”.

Luís Miguel Luzio dos Santos, professor de Socioeconomia na UEL

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