Vi recentemente o filme “O Assassino em Mim”. O que impressiona nesse thriller - e me leva à analogia com os assassinos de mulheres na vida real -, é a calculada frieza do psicopata que faz dublê do pacato xerife de uma cidadezinha do Texas/EUA. Suponha comigo: quantos misóginos, como o maníaco do filme, podem estar, neste exato momento, impondo o mesmo ritual perverso às mulheres com quem vivem, em um país onde diariamente quatro são vítimas desse crime hediondo?

Apenas no estado de São Paulo as mortes por feminicídio no 1º semestre de 2023 aumentaram 34% em relação ao mesmo período do ano passado. Os casos de lesão corporal dolosa e de ameaças contra mulheres somam 80% segundo os índices divulgados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP).

O assassinato de mulheres, quando essa atroz modalidade de crime ainda não tinha a conotação jurídica como feminicídio, já era uma das tragédias anunciadas da Humanidade muito antes de ter se acirrado o debate global de gêneros, do feminismo e da igualdade étnica e racial.

Há mais de sete décadas, em um outubro que ainda não era rosa, a escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir dava o primeiro grito de alerta no livro Segundo Sexo, hoje a bíblia de cabeceira do feminismo. Nele, tal qual a mulher que, liderando um invisível e Incrível Exército Brancaleone, contesta os protocolos da medieval e suposta hierarquia de gêneros, enunciada em trabalhos de figuras históricas do campo filosófico como Engels, Marx, Freud e Aristóteles.

E deixa no ar a pergunta que ainda hoje não quer calar: “Onde está a raiz da desigualdade entre homens e mulheres?”

Afinal, perguntamos nós, por que os homens estão matando as mulheres que dizem amar? Há mais interrogações do que imagina a nossa vã filosofia para explicar o funcionamento dos gatilhos que levam o homem à insanidade do feminicídio.

A diferença de status social e econômico, a exposição nas redes de internet, as fake news, a mudança de comportamento, a imagem da mulher que o homem constrói no começo da relação e quer manter intacta até que a morte os separe...

Esses gatilhos podem ser acionados isoladamente ou em conjunto e, seja como for, acabam levando ao ciúme doentio, como foi o caso dos primeiros feminicídios de repercussão no Brasil: da socialite mineira Ângela Diniz em 1976 pelo playboy Doca Street e da cantora Eliane de Grammont, assassinada em 1981 pelo ex-marido Lindomar Castilho quando se apresentava em um bar da zona sul de São Paulo.

Os dois crimes monopolizaram a opinião pública e, pasmem, no julgamento do assassinato da socialite, a maioria dava razão ao playboy, graças à estratégia do seu advogado, que utilizou a tese da defesa da honra e pintou a vítima como provocadora. “Foi uma explosão incontida de um homem ofendido na sua dignidade”.

Demorou, mas, felizmente, a lei 13.104 de 2015 alterou essa cruel realidade que considerava culpada a própria mulher pelo crime de que fora vítima. Então, eu me pergunto: será razoável pensar que eu mesmo, se não tivesse sido educado para o respeito, para a solidariedade e para o amor, poderia sucumbir aos instintos e praticar uma agressão dessa natureza? Para mim, ainda é a educação que salva o espírito de civilidade e, enfim, a civilização.

Ricardo Castilho é jurista e escritor, pós-doutor pela USP e Universidade Federal de Santa Catarina. É diretor acadêmico da Escola Paulista de Direito

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