O primeiro livro que li na faculdade era em francês: L’hasard. No dicionário é traduzido como “chance”. Mas, o termo aproxima-se muito do nosso “acaso”. Os jogos de “azar” (jeux de hasard) têm origem etimológica nesse conceito, uma vez que obedecem a determinadas probabilidades. Eu disse “determinadas”, pois sabemos que por lei os detentores dos jogos retêm cerca de 20% em lucros. A língua portuguesa, para subtrair qualquer conotação negativa ao termo “probabilidade”, inventou outro: “azar”! Porém, paradoxalmente, esse, etimologicamente é árabe (az-zahar) que vem a ter um significado positivo: felicidade, acaso feliz, etc. Portanto, os meus conterrâneos lusos dão ao conceito azar a conotação de “falta de sorte”! Só que sorte, é um evento que ocorre de forma aleatória e por conseguinte seria mais próximo de azar em francês!

Mas voltemos à tradução literal. Chance expressa a incapacidade de prever com certeza um certo fato, isto é, prever o que acontecerá. Assim, é dito que o acaso é sinônimo de "imprevisibilidade". Digo "com certeza" porque sempre é possível prever diferentes eventualidades e até mesmo a sua probabilidade, mas simplesmente não é possível dizer o que acontecerá. Por exemplo, ao lançar um dado de seis lados, sabemos que o resultado será uma das seis possibilidades, mas não sabemos qual delas. A imprevisibilidade contempla a probabilidade. O acaso afinal, “não é tão acaso”!

Cada vez que somos confrontados com uma impactante tragédia, surgem as teorias relacionadas com esta temática. A história das vítimas nos infortúnios, serve para alimentá-las envolvendo até o transcendente. Assim, chamamos de sorte aos que perderam o voo que caiu em Vinhedo e de azar aos que acabaram embarcando. E alguns vão mais além, acusando um sinal do alto a quem sobreviveu! Ora, infelizmente para uns e felizmente para outros, o acaso se impôs. Um acaso repleto de probabilidades, condicionadas a fatores internos e externos, como mostrará a investigação em curso. Um ou outro que perdeu o voo e agora anuncia ter “nascido de novo”, provavelmente estaria chateado com a companhia se tivesse perdido a conexão internacional, em circunstâncias normais.

O acaso, o azar, a chance, estão na nossa vida a full time! Nada lhes escapa. Contudo, nenhum deles está isento de condicionantes! Por exemplo, uma criança é morta de forma violenta a cada duas horas no Brasil; as armas de fogo foram usadas em três de cada 10 dessas mortes. Ora, este “acaso” é repleto de circunstâncias bem conhecidas, que determinam a tragédia! Vejamos um caso positivo: Rebeca Andrade tornou-se a maior medalhista do Brasil; as probabilidades de que uma menina vinda do seu meio consiga esse feito são quase nulas! Porém, o esforço, dedicação e disciplina, fizeram a diferença. Eis aqui, formas de reduzir as probabilidades do fracasso.

Podemos morrer de carro ou de avião. Mas o risco global de acontecer num voo comercial entre 2018 e 2022 foi de 1 em 13,7 milhões. No Brasil foi ainda menor! 1 para 80 milhões! Também aqui, o acaso e o azar estão repletos de condicionantes e o ser humano vem trabalhando para reduzir os fatores negativos. Por sua vez, acidentes de trânsito, envolvendo consumo de álcool, conservação de estradas, uso do celular etc. são a prova da ingerência negativa na “lei das probabilidades”!

Por fim, deixemos Deus fora desta conversa! Quando morreu a Dra. Zilda Arns sob escombros num terramoto no Haiti, logo se apressaram a mostrar um crucifixo que restou incólume. Deus teria salvo um pedaço de madeira (por alto significado que tenha) e “deixado” morrer uma mulher! Ora, esse não é do Deus da Bíblia e acredito, de nenhuma religião! Dizer também que “chegou sua hora” é um fatalismo que driblaria o que escrevo e não consola ninguém que fica.

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese de Londrina

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