Somos BRICS (desde 2006), mas não estamos BRICS (desde 2018). Isso na hora mais escura, quando três de nossos parceiros (Rússia + Índia + China) estão ofertando vacina contra o vírus pandêmico mundo afora, mas não parece que a demanda tenha ancorado em nosso litoral...

Não sou conhecedor de geopolítica o suficiente para esgrimir teses que estabeleçam os motivos que conduziram nosso desalinhamento do BRICS, ainda que me pareça muito evidente que a importância retórica de mudar os rumos da história, sem o devido cuidado, sem qualquer respeito e, principalmente, conhecimento da estrada, foi o fio condutor dos burros à água – ou os burros é que conduziram o país ao brejo? Não decidi ainda, mas sigo na esperança de meus dois neurônios se acertarem sobre o tema...

Tenho, todavia e sopesada a necessidade política emergente da nova ordem que se apossou do país – de viés fascista naquilo que tutela a ditadura das maiorias –, um palpite que passa pela maneira como devemos ver o mundo...

Deng Xiaoping teria observado, em relação a sua China: ‘No presente momento, somos ainda uma nação relativamente pobre. É impossível para nós cumprir muitas obrigações proletárias no nível internacional, de modo que nossa contribuição continua pequena. No entanto, assim que tivermos concluído as quatro modernizações, e a economia nacional tiver se expandido, nossa contribuição à humanidade, em especial ao Terceiro Mundo, será maior. Como um país socialista, a China sempre pertencerá ao Terceiro Mundo, e jamais buscará hegemonia’.

Xiaoping foi o líder político da República Popular da China de 1978 a 1992 e, durante sua liderança, introduziu as chamadas quatro modernizações que sustentaram o crescimento econômico do estado chinês.

Ele, Xiaoping, considerava a reforma política chinesa uma ‘segunda revolução’. Estava certo o grande líder – mas não é de Xiaoping que pretendo falar, e sim da diferença que um estadista faz para seu povo.

Sem qualquer pretensão de esgrimir os motivos que levaram um país socialista ao topo da cadeia geopolítica na segunda década do século XXI, não consigo desligar este fato da fala histórica de Xiaoping, acima destacada, mais especificamente da parte onde ele desanuvia seu comprometimento com a humanidade – ainda que resguarde a necessidade primeva de crescimento da economia interna...

Nós éramos emergentes há uma década e meia. Foi esta a sustentação de nossa participação na criação do BRICS. O que mudou de lá para cá, todavia, foi o que nos apartou gradativamente daquela circunstância e daquele clima de crescimento...

Nossas expectativas já foram muito mais altas. Nosso voo já alcançou maiores e mais distantes nuvens. Hoje somos insignificantes geopoliticamente falando. Não somos senão uma sombra da goiabeira de Damares...

Respeitosamente, uma comédia de erros de viés religioso não faz um governo. Tampouco une um pais já tão dividido (historicamente) pelo preconceito, pelo machismo, pelo fundamentalismo e por outras excrecências (secularmente anacrônicas) mais...

Percebam a ironia: enquanto Xiaoping, há mais de três décadas, falava em contributo humanitário nós seguimos promovendo uma revisão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), a teor de uma portaria publicada para convocar um grupo de trabalho a discutir o tema dos direitos humanos – passará a boiada?

Não pode isso Arnaldo! É muito retrocesso para pouca inteligência – afinal, vamos rever direitos humanos ao tempo em que o governo abre a porteira do porte de armas...

Vamos rever direitos humanos ao tempo que falsos historiadores sustentam que o nazismo é de esquerda. Vamos rever direitos humanos ao tempo que Marielle é reconhecida e reverenciada em França – enquanto por aqui sua memória é, cotidianamente, desconstruída (para não mais falar da placa rasgada)...

Vamos rever direitos humanos quando temos um presidente que considera nosso racismo ‘mimimi’. Vamos rever direitos humanos quando mais de 250 mil brasileiros estão mortos pela Covid e nem assim os negacionistas se questionam...

Vamos rever direitos humanos quando o país se preocupa em eliminar participantes de um medíocre show televisivo que se apropria de conceito ficcional ínsito à obra futurista de Orwell, em vez de discutir o desmonte da Petrobras, encaminhada para a privatização – ao tempo em que o gás de cozinha alcança a cifra histórica de cem reais...

Vamos rever direitos humanos quando nossa elite econômica assiste impassível o show de horrores cotidiano patrocinado por seu mito de estimação, ao tempo em que aplaude o enterro de direitos históricos dos trabalhadores.

Como diria Lenice: Pior...

Como disse Machado, por Quincas Borba: ‘traz a ideia do ímpeto, do sangue, da disparada, ao mesmo tempo que a da serenidade com que torna ao caminho reto, e por fim à cavalariça’.

Todavia, não consigo vencer o fato de, ainda ontem e sem vacinas suficientes, licitamos a compra de cloroquina, ao som de um silêncio constrangedor de nossas elites e, principalmente, da PIG.

Somos, sim, um país, ainda que não estejamos este país...

Pensar que por muito menos Renato Russo mandou a real: "Na morte eu descanso, mas o sangue anda solto, manchando os papéis, documentos fiéis, ao descanso do patrão".

Descansemos todos, que amanhã é outro dia e as goiabeiras haverão de nos ‘redimir da noite mal dormida’.

Que país é esse?

João dos Santos Gomes Filho, advogado