O ano que agora finda, não foi um ano qualquer para o Brasil. Assinalando a data do bicentenário da independência, revelou por sua vez um clímax de polarização política, que se arrastava desde 2016. São inclusive vários os críticos, que acusam o atual presidente de não só, não ter feito nada para distensionar, mas com as suas atitudes e palavras, ter provocado o contrário! O doloroso processo eleitoral corroeu relações familiares e amistosas e invadiu o campo específico das religiões. Padres, pastores e bispos necessitarão sem demora refletir sobre este processo, fazendo-o por óbvio, com a caridade evangélica imprescindível, porém com a legítima abordagem científica inerente a um fenômeno deste porte. As inúmeras agressões verbais e até físicas dentro dos templos foram além do inusitado! Rasgaram as vísceras do sagrado que pauta, em última análise, o cerne das relações entre os crentes e com os seus líderes. Situações constrangedoras, típicas da intolerância religiosa de épocas passadas ou de certos países no presente. Mas ainda mais do que isso. Protagonizadas pelos crentes dessas mesmas religiões, transformam-se num escândalo com letra maiúscula! E para agravar o quadro, vemos que a desconfiança alimentada continua!

A religião sempre esteve ao lado da política numa cumplicidade proveitosa e às vezes, perversa, para ambas as partes. Contudo, com a Revolução Francesa e principalmente no século XX, a discussão em torno do Estado laico, obrigou a Igreja Católica a migrar para a esfera que a caracterizava enquanto tal, embora isso nunca a tenha remetido necessariamente à sacristia! Aliás, ela manifestou desde o início, apreço por sua nova situação! A independência do Estado tornou-a colaboradora e parceira na execução das políticas públicas que mais tarde esse mesmo Estado assumiria, e deixou-a livre para a sua única e perene missão: evangelizar! Sabemos que padres e bispos ao longo do século passado se imiscuiram na política partidária. Foram vários. Até o queridíssimo padre Cícero! Mas a Instituição, enquanto tal, reservou para o campo bíblico do profetismo a sua atuação. Foi assim que ela agiu durante os anos duros da Ditadura Militar com nomes como Helder Câmara, a caminho da beatificação e Paulo Evaristo Arns.

Com o surgimento dos evangélicos pentecostais, o Estado laico não teve mais paz. É manifesto e constatado o surgimento de um modus operandi por parte dessas Igrejas, pleiteando a presença de pastores nos meios políticos, incluindo o Congresso, o STF ou até os Ministérios, para a defesa dessas Instituições na época minoritárias e de seus valores e costumes. O poder político como braço da religião! Convenhamos que a Renovação Carismática Católica, grupo de fronteira, também seguiu o mesmo trilho a partir dos anos 90, “fechando” com vereadores e deputados! Ora, a eleição de líderes religiosos com o objetivo claramente lobístico, atenta contra o Estado laico! Estado, como já foi mencionado inúmeras vezes, que não é laicista nem secularista! A laicidade do Estado brasileiro, essa sim, seria corroída dando origem, em última instância, a Estados teocráticos, como Irã, Afeganistão e outros.

Nesta última eleição, religião e política se usurparam mutuamente! No pior sentido do termo! E com isso, a religião foi arrastada para o pântano devorador dos mistérios que ela deve zelar e cuidar. A lama fétida despertou nos corações dos crentes sentimentos repugnantes! Ao se ajoelharem, subjugados a fake news, teorias conspiratórias e negacionistas e aceitarem como verdades absolutas, mentiras fabricadas em laboratórios do ódio, passaram a agir desconectados da realidade, insultando os seus legítimos líderes. O maior desafio, repito, para as Igrejas, será a purificação com base no Evangelho. Sem uma catarse coletiva de humilhação e prostração ao único Senhor, não haverá condições de usarmos o termo fraternidade. Feridas não saradas entram num processo de gangrena. Para leitura complementar, recomendo os livros "Eichmann em Jerusalém" e "As origens do totalitarismo” da filósofa Annah Arendt, que viveu de perto algo bem semelhante ao que escrevi.

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, arquidiocese de Londrina

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