São Paulo - Armas de fogo foram o instrumento usado em ao menos 3 de cada 10 casos de mortes violentas de crianças com até nove anos de idade no Brasil entre 2021 e 2023. O total de vidas tiradas nessa faixa etária durante o triênio, considerando outros meios, chegou a 520. A proporção do uso de armas foi maior em 2021 (39,3%) e menor em 2023 (31,5%).

A proporção de vítimas de armas de fogo é de 27,1% na faixa de 0 a 4 anos e chega, no grupo de 15 a 19 anos, a 86,3%.

Os dados são do Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, publicado nesta terça-feira (13) pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. As informações foram obtidas por meio de Lei de Acesso à Informação.

Ao todo, 15 mil crianças e adolescentes (de zero a 19 anos, segundo critério da pesquisa) foram vítimas de mortes violentas intencionais entre 2021 e 2023.

O indicador soma homicídios dolosos, feminicídios, latrocínios, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial. A proporção deste último tipo de óbito tem crescido em relação ao total de casos. Passou de 14% em 2021 a 18% em 2023.

O impacto das mortes violentas se distribui de forma desigual na perspectiva de raça e cor. Crianças negras com até nove anos de idade corresponderam a 74,6% das vítimas no ano passado, seguidas por 23,1% de brancas.

Já as mortes de crianças e adolescentes dos 10 aos 19 anos somaram 14.581, com uma queda de 8,4% em 2023 ante 2022.

Além do aumento da proporção das mortes causadas pela polícia, o alerta também aponta para a presença de armas de fogo dentro das residências, de acordo com Ana Carolina Fonseca, oficial de proteção do Unicef no Brasil.

Ao longo das faixas etárias, o principal local de mortes muda das residências (51,1% na faixa de 0 a 4 anos) para as vias públicas (62,3% de 15 a 19 anos).

"Por mais que saibamos que a dinâmica de mortes de zero a 9 anos seja doméstica, e a de 10 a 19, em via pública, chamou muito a atenção que as armas de fogo estejam tão presentes. É um alerta para monitorar e incidir no controle do uso de armamento por civis."

O salto no número de mortes violentas intencionais ocorre entre a faixa de 10 a 19 anos. No ano passado, essa quantidade passou de 259 em uma faixa para 4.488.

ESTUPROS

Com 165 mil registros nos últimos três anos, a violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil cresce mais entre quem tem até quatro anos de idade. No ano passado, o total de ocorrências de estupro reportadas chegou a 63.430, com alta de 17,6% na comparação com 2022 e de 35,3% ante 2021.

Considerando as taxas de estupros por 100 mil habitantes com até quatro anos de idade, o aumento entre 2022 e 2023 foi de 26,6%, o mais alto entre as faixas etárias, seguido por 5 a 9 anos (20,9%), 10 a 14 anos (15,4%) e 15 a 19 anos (13,3%).

Alguns estados chegam a apresentar mais que o dobro dos 68,7 casos por 100 mil habitantes da média nacional, como Mato Grosso do Sul (184,7), Santa Catarina (146,5) e Paraná (127,8), no caso de crianças nos primeiros quatro anos de vida.

O crime tem alta subnotificação, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que estimou uma parcela de 8,5% dos casos reportados às autoridades.

Para Ana Carolina Fonseca, do Unicef no Brasil, o crescimento dos registros entre crianças com até quatro anos, que dependem da percepção e da denúncia de outras pessoas, exige a capacitação de serviços com os quais as crianças têm contato para a identificação de casos. "A maior parte da violência sexual é cometida por pessoas conhecidas, então depende-se muito da retaguarda desses serviços para [a criança] ser acolhida ou poder relatar e ser, de fato, protegida."

Embora não sejam os únicos locais, escolas e unidades de saúde são prioritárias para essas capacitações, já que toda criança e todo adolescente deveria estar na escola e que serviços médicos, especialmente para crianças pequenas, podem ajudar na identificação dos casos de violência sexual.

Embora o crescimento de registros de estupro seja maior na faixa de zero a quatro anos de idade, a predominância deste tipo de violência se concentra na faixa dos 10 aos 14 anos, com 224,5 casos por 100 mil habitantes na média brasileira. Mato Grosso continua na liderança nesta faixa entre os estados, com 532,6 por 100 mil habitantes, seguido por Roraima (494,7) e Rondônia (480,5).

A predominância de estupros denunciados nessa faixa etária projeta outro problema, segundo o documento, para as 117 mil meninas vítimas: gravidez infantil. O documento aponta, segundo dados do Datasus, 17.456 bebês nascidos de meninas de 10 a 14 anos em 2021, e 14.293 em 2022.

A lei brasileira estabelece que qualquer relação sexual com pessoas menores de 14 anos é estupro de vulnerável.

De acordo com o documento, outro ponto que agrava a situação no Brasil é a proposta do projeto de lei 1.904/2024, o PL Antiaborto por Estupro, que equipara ao crime de homicídio o aborto após a 22ª semana de gestação. "Não são raros os casos de estupros consecutivos sofridos por meninas que só são percebidos pela rede de proteção após resultarem em uma gravidez", diz o texto.

Limitar a possibilidade de aborto legal, de acordo com a publicação, apenas agravaria o problema da gravidez infantil no país. O levantamento também identifica, como outros estudos, que a maioria dos casos de violência sexual ocorre em casa (ao menos 60%) e é cometida por conhecidos (ao menos 78%), com variações segundo os grupos etários das vítimas.