Imagem ilustrativa da imagem Um raio de saudade
| Foto: Marco Jacobsen

Despertava de manhã com todos os barulhos da casa, tão familiares e tão doces. Acordava, mas continuava ali no meio das cobertas e ia abrindo os olhos devagar, olhando em volta. Os raios de sol já haviam entrado pelas frestas da casa de madeira mata-juntada apenas do lado de fora. Não havia forro e as grandes vigas que sustentavam o telhado estavam escurecidas pela fumaça do fogão à lenha; as aranhas aproveitavam o ambiente para tecer suas teias em finas cortinas que brilhavam entre a fumaça e os raios do sol.

No ar aquele cheiro de café, cujo aroma nunca mais encontrei. Enquanto o raio de sol se misturava à fumaça, e brincava com as teias, parecia que deles saía um pó brilhante dançando no ar, em espirais de luz. Ficava ali alguns minutos admirando o cenário que, longe de ser pobre era simplesmente genial. Pulava da cama e já ia correndo olhar a vida, radiante, esperançosa e feliz. Sempre amei as manhãs e amo até hoje, mas, naquele tempo (olha eu já falando naquele tempo) as manhãs eram ainda mais belas, mais radiantes, sem enfeite algum, a não ser a natureza festando por todos os lados.

Eram as galinhas no terreiro, os gatos e cachorros aos montes, pastos, gramas, boiada e carroças passando nas ruas, raríssimos aviões no céu. E quando aparecia um a gente corria, pulava, gritava: avião, leva eu! Tomávamos o café correndo porque não tínhamos tempo a perder. Era muita coisa nos esperando do lado de fora, como subir nas árvores, rodar pneu na rua, brincar com bonecas, com bolinhas de vidro, pular corda, pular amarelinha riscada no chão do terreiro, balançar, cavalgar com cavalinho de pau, andar, correr, brincar, brincar! De vez em quando escutava:

“ Vem comer! ou “Vem já pra casa! ”

Passava o dia que a gente nem percebia, chegava o anoitecer, escurecendo tudo literalmente, sem luz elétrica, e a gente ia se recolhendo, cansados, sem querer tomar banho, a vontade era ir direto pra cama. Dormia feliz, sonhava, se agitava e no outro dia começava tudo de novo. Era só abrir os olhos para o dia que chegava barulhento, cheio de cheiros e de cores. Não era preciso mais nada porque a gente tinha tudo, principalmente a imaginação para tornar diferentes e criativas as brincadeiras daqueles dias tão iguais. Vamos brincar de...e mil opções apareciam.

Uma vida completamente simplória, num lugar mais simplório ainda, uma família como tantas outras, cheias de diferenças e de semelhanças, que não da luta nem perdia a esperança, dispostas num cenário que mais parecia um quadro daqueles que ainda se vê em paredes, com casinhas, árvores, flores, rios e um sol, amarelinho, pintado lá em cima!

Não sei se esse tempo existiu realmente! Só tenho a certeza que eu o vivi de verdade, numa fase da vida com o qual todos somos presenteados, apesar da dureza da existência humana.

Um tempo que o coração era tão puro e nada nos impedia de sorrir, de brincar e de sonhar: a nossa bela infância!

Estela Maria Ferreira é leitora da FOLHA