Imagem ilustrativa da imagem A carroça do pão
| Foto: Marco Jacobsen

Certas coisas da infância ficam marcadas em nossa memória. Morávamos num bairro afastado do centro onde o progresso tardava a chegar. Nossa casa era de madeira, sem forro e com móveis simples, mas suficiente para nossas necessidades e conforto. Do lado oposto de nossa casa havia uma favela com barracos bem humildes margeando a linha ferroviária.

Os terrenos eram separados uns dos outros por cercas de balaústre com pontas em forma de “V”. Havia apenas um pequeno portão de entrada cuja única fonte de segurança era uma taramela. No quintal não havia calçada, nem mesmo grama. Quando a chuva caía, respingava parte da terra nas paredes da casa dando duas colorações à madeira.

Não havia energia elétrica. Ela veio somente alguns anos depois e era uma festa acender e apagar as luzes nos primeiros dias de sua chegada...parecia algo mágico! Para iluminar a casa, tínhamos duas lamparinas abastecidas com querosene que meu pai trazia em uma lata comprada na “venda”.

Como não havia forro na casa, a fumaça que desprendia delas deixava as vigas de madeira com aspecto negro. A noite era uma penumbra só e todos nos recolhíamos cedo e ali deitados contemplávamos as velhas telhas pensando nas brincadeiras do dia seguinte.

Nos fundos da casa tínhamos um pequeno “banheiro” também feito de madeira com piso em ladrilho vermelho. Um velho balde suspenso por uma corda e preso a uma roldana na viga do teto era nosso chuveiro. A água era esquentada em chaleiras e colocada nele numa temperatura morna. Não nos dávamos ao desfrute de prolongar a estadia debaixo dele.

Controlar o tempo de banho era fundamental para evitar que não terminássemos o banho com umas canecadas de água fria vindas de fora para terminar nossa higiene. Enquanto um se banhava, nova remessa de água quente era preparada para o banho seguinte. Uma pequena abertura no chão com um pequeno suporte de madeira para sentar-se servia como vaso sanitário... Tempos difíceis... (?)

Mas, das lembranças doces que a mente recupera, uma me trouxe saudosismo: a carroça de pão. Trotando a passos lentos e marcados o velho cavalo puxava aquele baú de zinco carregando em seu interior pães e outras guloseimas. Com uma pequena sineta nas mãos, o velho carroceiro anunciava: “olha o pão, olha o pão fresquinho”!

Quando algum vizinho sinalizava com as mãos para que parasse com a intenção de comprar pães, corríamos descalços e desesperados como em uma competição para rodear a carroça e sentir aquele doce perfume adocicado. Calmamente, o velho senhor descia dela com certa dificuldade e com alguns suspiros ofegantes. Abria a traseira da carroça levantando a tampa e escorando-a depois com uma pequena haste de madeira de modo a deixar entreaberta para demonstração dos pães e guloseimas que trazia naquele dia.

Apoiávamos nossas mãos sujas na lateral dela e ficávamos contemplando aquelas maravilhas culinárias. Fechávamos os olhos e inspirávamos aquele cheiro inebriante dos deuses com o se devorássemos tudo aquilo com nossas mentes! Aquele cheiro maravilhoso assanhava até nossas mais tímidas lombrigas! Quando a tampa da carroça se fechava e ela partia, um pouco de nós também partia com ela... e as brincadeiras recomeçavam e se estendiam até a noite cair... só restando na mente aquela visão do paraíso sem ao menos provar nenhuma delas!

Valdinei Franco é leitor da FOLHA!