Em um cenário onde a tecnologia avança a passos largos e domina grande parte do tempo das crianças e adolescentes, incentivar a leitura aos moldes tradicionais pode parecer um desafio para livrarias e bibliotecas.

A Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, dirigida pelo Instituto Pró-Livro, é o único levantamento que avalia o índice de leitura no país com dados amplos, considerando preferências e as condições individuais de leitura e de acesso ao livro.

De acordo com a sua quinta e última edição, realizada em 2019 e divulgada em 2020, 71% das crianças entre 5 e 10 anos de idade e 81% na faixa etária de 11 a 13 anos são consideradas leitoras. No entanto, essa taxa diminui a partir dos 14 anos.

Para manter os números altos e até mesmo expandi-los, profissionais da área afirmam que existem estratégias eficazes para cultivar o amor pelos livros e promover o desenvolvimento intelectual e emocional dos jovens, mesmo em meio a tantas distrações digitais.

CONTATO COM A LEITURA

Denise Gentil é proprietária, administradora e curadora da loja Ciranda em Londrina, especializada em brinquedos educativos e livros infantis, onde atua lado a lado com famílias e educadores há 19 anos. Para ela, o contato com este universo deve acontecer desde antes da criança aprender a ler, através da contação de histórias feita por adultos, que impacta a sua relação com a leitura no futuro.

“O estímulo à leitura pode ser introduzido desde bebê. As editoras cada vez mais têm se esmerado em produções bonitas, atraentes, que podem ser compartilhadas, e que podem ser vistas em família, ou desde a barriga a mãe pode começar a incentivar”, diz, baseada também na recomendação de pediatras sobre o fortalecimento de vínculo entre cuidadores e o bebê durante a gestação. “Mas, não acontecendo isso, o exemplo é a grande influência. Ela impacta totalmente sobre o ato da leitura. Ver um pai e uma mãe com um livro é superimportante para levar essa criança a se tornar um leitor”, garante.

No dia a dia, na loja, Gentil percebeu um aumento crescente na busca pelas obras destinadas a crianças na primeira infância, pré-leitores e pequenos leitores fluentes. Mas, para competir com o excesso de telas e o fácil acesso a entretenimento online, os livros infantojuvenis tiveram que investir em recursos cada vez mais lúdicos e atrativos.

“Acho que essa é uma grande tendência. Ele se torna um objeto permanente. Eu falo muito isso da memória tática que a gente tem ao pegar esse papel, de ser um objeto bonito, de ser gostoso de tocar, de ter nas mãos, então ele está sendo muito pensado para isso. Diferentemente de coisas fáticas que correm na tela, o livro é um objeto de memória física que a gente tem. Se ele for prazeroso, ele vai estar na prateleira e você vai retirar para mostrar como algo bonito, algo que você gosta, além de ampliar a imaginação e de te levar a outros mundos e a outras perspectivas de vida”, afirma.

LEITURA CRÍTICA

Outra mudança foi sobre a criticidade despertada pelas páginas. “Os livros atuais abordam temas que antes eram tabus, apresentam questões complexas e valorizam a inteligência da criança, que hoje ‘sacam’ mais rapidamente o que os autores querem comunicar”, acrescenta Sueli Bortolin, que dirigiu o Sistema de Bibliotecas da UEL por 4 anos e esteve à frente do Sesc de Londrina por 16 anos.

Além disso, o público infantojuvenil agora conta com livros interativos, contendo jogos, enigmas, texturas, sons e cheiros, por exemplo, que adicionam uma experiência multissensorial à leitura.

As parcerias criativas entre as bibliotecas, livrarias e feiras de livros ajudamn a popularizar o contato com o livro e a leitura atingindo um público muito mais diverso
As parcerias criativas entre as bibliotecas, livrarias e feiras de livros ajudamn a popularizar o contato com o livro e a leitura atingindo um público muito mais diverso | Foto: Divulgação

A ATUAÇÂO DAS BIBLIOTECAS

A maior frequência de crianças e adolescentes aos espaços tradicionais de leitura também foi observado por Leda Maria Araújo, especialista em gestão de bibliotecas escolares e diretora das Bibliotecas Públicas de Londrina há 8 anos.

Segundo ela, a nova realidade se deve à maior consciência dos familiares sobre a importância da literatura no desenvolvimento infantil, aliada a agendas especiais, como os projetos "Toda Quinta Tem História"; e "Quartas Criativas", e iniciativas de incentivo em trabalho conjunto com pais, escolas e comunidade.

Araújo acredita que as bibliotecas escolares e públicas desempenham um papel essencial na formação de leitores críticos e reflexivos, por meio de atividades literárias, como contação de histórias, rodas de leitura e programações de férias, focando no prazer da leitura, e não apenas em tarefas obrigatórias como provas e trabalhos.

“As bibliotecas têm que saber incentivar essa leitura. Nesse sentido, tem uma frase de uma escritora da Literatura Infantil, a Maria Dinorah, que diz: ‘O livro é aquele brinquedo que, por incrível que pareça, entre um mistério e um segredo, põe ideias na cabeça’. As bibliotecas devem trabalhar o livro como se fosse um brinquedo, como algo que faça parte do cotidiano dessas crianças, que desenvolva a criatividade e a imaginação, e que contribua para a formação e a construção de um conhecimento na criança por meio da leitura, para que se reconheça no texto e o ressignifique trazendo para o dia a dia e para o seu mundo”, diz.

Leda Maria Araújo, diretora das Bibliotecas Públicas de Londrina: As bibliotecas devem trabalhar o livro como se fosse um brinquedo, como algo que desenvolva a criatividade e a imaginação"
Leda Maria Araújo, diretora das Bibliotecas Públicas de Londrina: As bibliotecas devem trabalhar o livro como se fosse um brinquedo, como algo que desenvolva a criatividade e a imaginação" | Foto: Divulgação

Complementando essa visão, a bibliotecária Ana Mischiati, do Centro Cultural Lupércio Luppi, na região norte, observa o esforço de pais, avós, irmãos e até mesmo babás ao levarem crianças à biblioteca e cita as medidas que costuma aplicar.

“Costumo incentivar os pais e responsáveis a fazerem o empréstimo, com o cadastro em nome da própria criança. Com isso, ela vai criando um vínculo com a biblioteca e passa a se responsabilizar pelo livro e se compromete em devolver no prazo, mas há também aqueles pais que, assumidamente, não têm o hábito da leitura, mas querem que seus filhos tenham, assim eles procuram trazer os filhos sempre que podem à biblioteca”, revela.

Para Mischiati, as bibliotecas públicas oferecem um caminho leve e divertido para o acesso à cultura e à educação, possibilitando também o primeiro contato com as artes e contribuindo para a formação cidadã.

“O agente bibliotecário tem um papel fundamental, é ele que vai criar oportunidades e despertar a atenção das crianças e adolescentes para os diferentes temas, principalmente se este profissional for um entusiasta sensível e atento, é ele que irá estabelecer os vínculos e o senso responsabilidade dos jovens leitores com a biblioteca”, explica.

Assim, a reinvenção passa não apenas pela seleção de livros nas prateleiras, mas também envolve a participação dos profissionais da área e a transformação do local como um todo.

“As bibliotecas deveriam ser espaços de uso diário para o ato de ler, mas também para o ato de dizer. Chega de bibliotecas que pedem silêncio. Felizmente elas estão se transformando em espaço de escuta. Cada geração de profissionais que nelas atua, além de mediar o livro e a leitura, precisa estabelecer uma relação de confiança, levando o leitor a desejar permanecer na biblioteca”, conclui Bortolin.