Ninguém é obrigado a gostar de tudo o que aconteceu na abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Foi monótono aquele desfile de barcos levando atletas pelo histórico rio Sena. Mas, muito além das críticas que cada um de nós possa ter sobre a cerimônia, causa espanto a onda ilusória que toma conta das redes sociais sobre a performance dos dançarinos e drags queens que fez parte do evento esportivo, sinalizando de forma política temas contemporâneos: a diversidade sexual e a inclusão.

O grupo de drags maquiadas, vestidas ou "montadas", como se diz no jargão da turma, se transformou em objeto de polêmica quando alguém tomou uma figura mitológica - no caso o Baco dos romanos ou o Dionísio dos gregos - como Jesus Cristo, na representação do ator francês Philippe Katherine.

Não se sabe que tipo de miopia, confusão mental ou dissonância cognitiva fez com quem alguém pudesse supor que o ator pintado de azul, com uma coroa de flores na cabeça, de sunga, com um microfone na mão e uma trupe performática atrás dele pudesse ser uma representação de Jesus na Santa Ceia. Por sinal, a figura central da performance nem era Dionísio, mas o Apolo Coroado, representado pela DJ Barbara Butch, sentada à mesa, em segundo plano. A cena sofreu críticas de líderes políticos da extrema-direita, do candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, e de bispos que tomaram ou transformaram aquilo numa "zombaria ao cristianismo."

O babado começou a correr solto, envenenando mentes suscetíveis que passaram a jurar que a representação de um banquete de Dionísio era uma referência à Santa Ceia, tema de uma tela de Leonardo Da Vinci, pintada entre 1494 e 1498. Formada a confusão contra a "heresia", as drags devem ter se sentido frustradas por sua representação de um banquete dionisíaco ter sido confundida com uma cena bíblica.

O atrevido Dionísio deve ter se divertido com tamanha sandice.

PROTESTOS CONTRA O QUÊ?

Até hoje circulam na internet mensagens de grupos conservadores e religiosos que protestam contra a "Santa Ceia" da cerimônia de abertura dos Jogos sem raciocinar, por um mísero segundo, que por se tratar das Olimpíadas a direção do evento optou por uma cena que remete à origem de tudo: a Grécia e seu panteão de deuses. Em que outro evento caberia uma referência tão forte e tão clara à mitologia grega se não nos Jogos Olímpicos?

Vamos lá: Olímpicos vem da palavra Olimpo, o monte mais alto da Grécia que, na Antiguidade, os gregos supunham ser a casa dos doze deuses mais poderosos de sua mitologia. Não fazer a relação da palavra olímpico com o Olimpo parece o primeiro sinal da leseira que reduz uma ação artística ao preconceito dos que não querem "nem ver drag queens pela frente" e saltam daí para um embate que é pura ficção.

A origem desses jogos mentais, que provocam dissonância cognitiva na percepção da realidade, está ancorada em crenças religiosas ou políticas que fazem indivíduos ou coletividades enxergarem o que não existe e negar qualquer raciocínio lógico como o fato dos Jogos OLIMPÍCOS celebrarem os deuses do OLIMPO.

É fato que outra distorção também nasceu nas redes sociais. Em nenhum momento, quando questionado sobre a performance, o diretor artístico do evento, Thomas Jolly, afirmou que a cena foi inspirada na tela "A Festa dos Deuses", do pintor holandês Jan van Bijlert (1597- 1671). Isso nunca foi citado por Jolly como referência, ele apenas enfatizou a ideia da mitologia grega na abertura dos Jogos.

Essa associação aconteceu também na internet, avalizada inclusive por críticos de arte, que fizeram a relação entre a cena performática e o banquete dos deuses, tal como o representado na tela de Biljert e outros pintores. É preciso esclarecer que há outras telas na pintura clássica que se chamam "A Festa dos Deuses", como um quadro iniciado por Giovanni Bellini (1430- 1516) mas terminado por Ticiano (1490-1576), este sim, tido como de inspiração religiosa. Diante disso, quando a ala repressiva percebeu a gafe de associar a cena das Olimpíadas a uma passagem bíblica, passou a dizer que a tela de Biljert era, de qualquer forma, "inspirada na Santa Ceia", quando na verdade essa inspiração pode estar na tela de Bellini que também se chama "A Festa dos Deuses". O fato é que, mesmo com a troca das telas, já era tarde para disfarçar o vexame de mais uma fake news.

GUERRA CULTURAL

Trocando quadros como quem troca figurinhas, a direita pratica aquilo que se denomina "guerra cultural", uma fiscalização com intenções de reprimir os artistas e a arte em pleno século 21. O "papa" deste tipo de cruzada no Brasil foi Olavo de Carvalho, de triste memória, ancorado em correntes repressivas da guerra cultural norte-americana.

A cada informação falsa, a cada incursão pelas cruzadas da guerra cultural, ocorre em massa, via internet, aquilo que a psicologia social chama de "dissonância cognitiva", quando a mente individual ou coletiva passa a negar os fatos e a insistir em teorias de conspiração que não correspondem ao raciocínio mais simples. Não faz sentido associar a performance das drag queens na abertura dos Jogos Olímpicos a uma cena bíblica presidida por Dionísio no lugar de Jesus.

Trata-se de ilusão de ótica, um desvio de conceitos e muitos preconceitos. No fundo, o que choca os conservadores é ver drag queens protagonizando um quadro numa festa que se pretende universal, o que justifica a diversidade sexual que deve ser contemplada assim como a diversidade étnica e cultural do planeta.

Não custa lembrar que a própria tela pintada por Da Vinci, "A Última Ceia", não apresenta Cristo nem os Apóstolos com auréolas de santos, mas como sujeitos comuns, tal e qual as drag queens dos Jogos Olímpicos que devem ser vistas como pessoas e não como ofensas.

Já é tempo do falso moralismo ser substituído pelo amor ao próximo.