Logo na abertura, um show explosivo de heavy metal. É um duo. A cantora descarrega todo um acúmulo de tensões. Atrás dela, um ardoroso, frenético baterista dá o máximo em sua viagem-performance. Mas não se irrite, nem se precipite. Este prólogo é rápido, e deve ser ouvido em toda sua ensurdecedora extensão. Em cerca de três minutos, o diretor estreante Darius Marder capta a maneira intensa e vital como os intérpretes sentem o ritmo. Como entregam as energias ao culto do volume, do ruído. Então, decorrido pouco tempo, será a vez do silêncio. E quando ele se impuser (como resultante de um efeito inesperado e cruel), terá consequência devastadora sobre Ruben, o baterista.

O filme, “O Som do Silêncio” (Amazon Prime), é obra que em nenhum momento se esquece de que o cinema é uma paleta audiovisual riquíssima, à disposição de quem sabe utilizá-la com propósitos bem definidos. Especialmente certo cinema indie estadunidense, no qual “The Sound of Metal” (titulo original) com certeza se enquadra.

Este status de crônica sensorial se deve em boa parte à confiança que o cineasta tem na seção de som de seu filme. Contar essa história de limitações e superações sem atribuir peso dramático a este aspecto não faria sentido. Darius Marder deixa que o som (neste caso, a ausência dele) seja o elemento que narra a odisseia interna do personagem Ruben (Riz Ahmed).

Pois é ele quem vai, súbita e terrivelmente, perder por completo a audição. Assim, sem mais. E que melhor maneira de mostrar a mortificação que é não mais depender de um dos sentidos (no caso de um músico, o principal deles), do que privar o espectador dele? Este é o papel do design de som: parar de explicar para começar a mostrar. Ruben, após uma primeira, única e compreensível explosão de raiva e impotência diante a exasperação e irreversibilidade de sua situação, deve abandonar a vida de músico nômade no motorhome que divide com sua companheira de vida (a vocalista do duo, Louise, vivida por Olivia Cooke). Será ela que, temendo uma possível recaída dele – ex-viciado em drogas pesadas e clean há quatro anos –, o levará a um centro de reabilitação especializado em portadores de problemas auditivos graves.

Desse ponto em diante, Ruben estará a sós consigo mesmo(e com o espectador, transformado em cúmplice) mas não por muito tempo. No centro ele passa a conviver com outros surdos, e é ali que se constrói a parte essencial do discurso que “O Som do Silêncio” disponibiliza ao espectador. A surdez é irreversível, e o objetivo é aprender a conviver com ela. Progredir funcionalmente, abandonando noções que antes eram tidas como certas para se adaptar a novas forma de existir. O filme se transforma então num tratado sobre a identidade e a aceitação, sem nunca apelar para o trivial de redenção e superação, mas com genuína sensibilidade, sem demagogia, sem chantagem, sempre buscando o realismo mais conciso.

Para este estado de graça muito contribuiu a escolha de um ator que teria que carregar um Ruben com dedicação e talento. E a escalação dos potenciais aspirantes ao Oscar de abril tem no anglo-paquistanês Riz Ahmed um candidato com muitas chances na bolsa de apostas. Ele oferece não apenas uma interpretação sensível como registro dramático – sempre agitada e alerta, mas jamais excessiva. Ao capturar tais situações extremas, ao avaliar o nível de histrionismo, às vezes é difícil saber onde está o freio, qual o ponto em que se processa o refinamento. Ahmed é um mestre nessa arte fronteiriça, e “sem” a audição, ele sabe explorar a visão, a voz, o gestual como poucos fariam. Enfim, transforma o seu universo interior em um oceano de emoções : como ele descobre a si mesmo, como ele revê o mundo ao redor, como ele busca e encontra a paz . É isso: um filme que sai em busca da paz interior. E a encontra da forma mais satisfatória possível, atraente e eficaz. Bem vindos a este mundo silencioso.