São Paulo - Famosas na literatura com romances e obras de não ficção, a portuguesa Rosa Montero e a carioca Mary del Priore voltam agora ao mercado editorial com a função de "reescritoras". Na pauta, a ânsia de mostrar que, numa história, os verdadeiros personagens principais nem sempre são os que ganham mais destaque.

No livro há nomes famosos como o de Frida Kahlo, mas o foco está nas mulheres apagadas da história
No livro há nomes famosos como o de Frida Kahlo, mas o foco está nas mulheres apagadas da história | Foto: Daria Zinoveva/ iStock

Autora de "A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver", Montero lança "Nós, Mulheres", um apanhado de biografias femininas em áreas como ciências, política e artes. Há, sim, nomes ilustres como Frida Kahlo e Simone de Beauvoir, mas o foco principal está na vida de quem foi apagada por uma "história oficial e sexista", como define a autora.

"A falta de valor social da mulher faz com que ela mesma se valorize menos e com que os homens também a valorizem menos. Grande parte da violência doméstica contra a mulher e de toda a violência feminicida se deve a essa manipulação mentirosa da história", avalia a escritora, em entrevista.

A historiadora e pesquisadora em ciências sociais Mary del Priore se vale de anônimas de variados períodos históricos e classes sociais para costurar "Sobreviventes e Guerreiras - Uma Breve História da Mulher no Brasil de 1500 a 2000".

Segundo ela, mesmo que as mulheres estejam no centro de todos os debates, ainda é preciso se aprofundar mais. "Há um grande desconhecimento sobre quem fomos, quais as raízes dos constrangimentos que enfrentamos, nossas histórias de sucesso e resistência e as representações que são construídas sobre nossos papéis sociais. A boa mãe, a 'moça para casar', periguetes", afirma.

"Conhecer as transformações pelas quais passamos, indo do espaço privado para o público, vai certamente ajudar a entender quem somos. Diferentes de nossas avós, hoje, temos que conjugar vários papéis ao mesmo tempo - um desafio exaustivo que fica mais leve quando olhamos para trás e realizamos que demos muitos passos para a frente."

Quando publicou seu livro "Historias de Mujeres", 25 anos atrás, Montero relembra que biografias femininas não eram comuns, porque havia a ideia de que poucas tinham sido importantes. "Sempre foram discriminadas", diz.

"Nós, Mulheres" é uma revisão da compilação de personagens de duas décadas e meia atrás, agora com a adição de outros 90 nomes. "Não é que não podíamos nos destacar em nenhum campo público porque nos era proibido estudar, trabalhar", conta.

"As mulheres se destacaram, sim, em absolutamente todos os campos da atividade humana, e em todas as épocas. O que é terrível é que a história atribuiu suas conquistas aos seus pais, irmãos, colegas, maridos. Estamos agora reescrevendo e corrigindo a narrativa mentirosa com que fomos educados."

Montero apresenta, por exemplo, a vida de Christine de Pizan, nascida em 1364, tida como a primeira escritora profissional da história e articuladora da causa feminista, por meio da reivindicação do direito das mulheres à educação e ao conhecimento. Já Wu Zetian, uma imperatriz chinesa do século 7º, foi acusada de torturar outras mulheres e de matar seu próprio filho para se livrar de rivais e aparece em outro verbete.

A autora conta que escolheu mulheres com vidas que a fascinavam. "Leio muitas biografias, e essas personagens me pareceram interessantíssimas. Não é um livro de santas. Há as boas, as más, e há as muito más. Mas todas são incríveis, poderosas e fascinantes", diz Montero.

Priore explica que seu livro é herdeiro de 20 anos de pesquisas. "Desde o século 18 ocorreu uma grande mobilidade social e mestiçagem que tirou milhares de mulheres pobres e analfabetas da condição de escravidão. Na capitania de Minas Gerais, o segundo grupo mais poderoso, depois dos homens brancos, era o das negras forras", exemplifica.

A obra traz, por exemplo, a história de Rosa Egipcíaca, feita escrava em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Como prostituta, ganhou dinheiro suficiente para comprar sua alforria e, mais tarde, uma casa de prostituição. Um dia, teve uma visão -Virgem Maria a orientava a fundar um convento só para ex-prostitutas negras.

Além disso, ela deveria aprender a ler e escrever para contar sua vida num livro. Então comprou um imóvel no centro da capital fluminense, montou o tal convento, e escreveu 250 páginas --elas, como sua autora, também desapareceram na história.

"Em todo o Brasil, o elevador social funcionou para nós. Mas a condição para entrar nele sempre foi a mesma, o letramento", acredita Priore. "Empresárias precoces, elas fizeram do pequeno comércio seu ganha pão e, com criatividade, enriqueceram e educaram seus filhos."

Segundo a historiadora, "a violência e o patriarcado não vão terminar por decreto". É preciso, em sua opinião, enfrentar o que restou da cultura patriarcal. "Ela tem que perder sua legitimidade pelo abandono da violência, do sexismo e da dominação por parte de homens que estão, eles também, vivendo intensas mudanças."

"A 'igualdade desigual', esse hiato entre discurso e prática, acaba por alimentar as tensões em que estamos mergulhadas. Mas, compreender as raízes do problema é fundamental. E, para isso, é essencial recuperar através da história a voz e as marcas de testemunhas. Elas nos permitem enxergar o passado no presente, para viver melhor consigo e com os outros."