“Todas as manhãs, acordava morto. Normalmente ressuscitava em quinze ou vinte minutos. Às vezes, três dias depois. Mas sempre faltava um pedaço.”

Este microconto integra o novo livro do poeta Ademir Assunção, “Espelhos”, publicado pela editora Cobalto. O lançamento acontece sábado (dia 03) no Sesc Londrina Cadeião, às 16 horas. Além de sessão de autógrafo e bate-papo, haverá a exibição de poemas cinéticos produzidos pelo autor.

“Espelhos” traz microcontos e epigramas acompanhados de desenhos de Sandro Saraiva. Reúne textos breves, geralmente humorados, que procuram encarar a realidade através da lente do delírio e da alucinação: “Quando as cortinas finalmente se abriram, não havia ninguém na plateia”

Autor de 18 livros, Ademir Assunção recebeu o prêmio Jabuti de 2013 pelo volume de poesia “A Voz do Ventríloquo”, publicado pela editora Edith. A seguir Assunção fala sobre sua nova obra.

Imagem ilustrativa da imagem Livro traz Ademir Assunção entre o humor e a provocação
| Foto: Sandro Saraiva/ Divulgação

“Espelhos” é um livro diferente de suas obras anteriores. Não é formado por poemas, mas por microcontos, epigramas e desenhos pouco convencionais. Qual sua intenção neste novo formato?

Sempre me impressionou o poder de síntese de cartunistas como Angeli, Quino ou Dik Browne. Posso incluir na lista também o Beto, de Londrina. Muitas vezes, em apenas um quadrinho, eles conseguem expressar, com clareza e precisão, uma situação política, um cacoete comportamental, uma característica humana, cômica ou trágica. Tentei exercitar esse poder de síntese com a linguagem verbal. Quando já havia desenvolvido alguns microcontos, pensei: já que o cartum é uma referência, por que não juntar os textos com desenhos? Então, convidei o Sandro Saraiva, desenhista que admiro, para uma parceria. Disse a ele que não pensava em ilustrações para os textos, mas uma conversa entre duas linguagens diferentes. Seguimos trabalhando durante dois anos e quando nos demos conta, tínhamos material para um livro.

As palavras e as imagens de “Espelhos” encaram a realidade a partir da lente da alucinação e do delírio. Por quê?

Tenho a impressão que o delírio e a alucinação, anos atrás, estavam circunscritos a certos estados alterados da mente. No mundo de hoje, saturado por mensagens incessantes, vindas especialmente pelas telas dos computadores e celulares, parece que vivemos num estado constante de delírio e alucinação. Veja: quando o escritor Franz Kafka cria uma fábula em que um homem comum acorda transformado em um inseto, ele apresenta uma situação excepcional. Transposta para o mundo atual não seria absurdo imaginar que a irmã do personagem Gregor Samsa, em vez de se horrorizar com a metamorfose do irmão, imediatamente sacasse o celular, tirasse uma foto e postasse nas redes sociais.

Os microcontos de “Espelhos” interpretam o mundo atual de maneira provocadora e, ao mesmo tempo, com humor. Você acha que o mundo atual pede novas interpretações?

Acho que o mundo atual necessita um pouco mais de silêncio. Para ouvirmos a nossa própria voz interna, para ouvirmos o outro, entender seus sinais. Um samurai, diante de seu oponente com uma espada afiada em punho, se não observar com precisão o movimento do outro, em segundos ele perde a cabeça. Literalmente. Quanto à provocação e ao humor, creio que estão presentes em boa parte daquilo que venho criando há décadas. Livros anteriores como “A Máquina Peluda”, “Adorável Criatura Frankenstein” e “Ninguém na Praia Brava” estão impregnados de humor – e também provocação. Sem humor corremos o risco de nos tornarmos céticos demais, áridos demais, apocalípticos ao extremo.

Um dos epigramas de “Espelhos” sugere que os grandes poetas da atualidade se transformaram em microempreendedores. O que isso significa?

Você se refere ao microconto “Neoliberou Geral”: “A vida lhe reservou um futuro promissor: de grande poeta a microempreendedor”. Acho que o próprio título já contextualiza a micronarrativa. Nessa agonia derradeira do sistema capitalista, em que as relações de trabalho são cada vez mais precarizadas, nem os poetas e artistas em geral escapam da montanha kafkiana de papéis que precisamos apresentar para conseguir trabalhar, ganhando cada vez menos. A propósito, acabei de ler um livro muito instigante do filósofo italiano Franco Berardi, chamado “O terceiro inconsciente”, em que ele diz textualmente: o capitalismo morreu, e se demorarmos muito para enterrá-lo corremos o risco de que ele enterre toda a espécie humana. Com a pilhagem voraz dos recursos naturais e a riqueza cada vez mais concentrada nas mãos de poucos, Berardi alerta para o fato de que corremos a passos largos para a auto extinção.

No lançamento do livro que acontece no sábado, no Sesc Cadeião, haverá uma exibição de seu trabalho com a poesia cinética. Como são esses poemas?

Ao longo dos anos fui criando um ou outro poema visual, em que a própria distribuição da palavra no espaço da página, o tamanho das letras, as cores e as tipologias diferentes assumissem significados na totalidade do poema. Mas sentia falta do movimento. Queria criar simultaneidades de leitura, de percepção, de emissão do texto, trabalhar o ritmo de entrada e saída das palavras no espaço da tela. Durante a pandemia me dediquei a dominar alguns programas de animação gráfica. Após a edição de vídeo, pensei em trilhas sonoras que criassem mais uma camada de significações. Estou seguro que estes poemas propõem ao leitor outras possibilidades de leitura. O que vou mostrar em Londrina é uma pequena parte dos mais de 130 poemas que criei nos últimos três anos.

Imagem ilustrativa da imagem Livro traz Ademir Assunção entre o humor e a provocação
| Foto: Divulgação

SERVIÇO:

“Espelhos”

Autor – Ademir Assunção

Ilustrações – Sandro Saraiva

Editora – Cobalto

Páginas – 98

Quanto – R$ 35

LANÇAMENTO

Quando – Sábado (03), às 16h

Onde – Sesc Londrina Cadeião (Rua Sergipe, 52)

Quanto – Gratuito