SÃO PAULO, SP - Ao estrear a ópera "Amor Azul" no Brasil, na noite da última quinta-feira (29), em uma Sala São Paulo lotada, Gilberto Gil, de 82 anos, revelou a resolução de sua obra artística, que definiu os rumos da canção brasileira no século 20. E a ópera abrigaria a maximização de tal pensamento - uma espiritualidade irrestrita que ganhou a forma de uma história de amor magnânima e, serenamente, azul.

Composta a partir de 2007 em parceria com o maestro italiano radicado no Brasil Aldo Brizzi, a obra estreou, há dois anos, no auditório da Radio France, em Paris, sendo agora interpretada pela Orquestra Jovem do Estado de São Paulo, o Núcleo de Ópera da Bahia e o Coro Acadêmico da Osesp.

"Amor Azul" conta a história de amor entre Krishna, um deus que seduz todas as mulheres do mundo, interpretado por Josehr Santos, e Radha, mulher sedutora que é ao mesmo tempo apaixonada e atormentada, vivida por Luciana Pansa. Gil é o narrador, Jayadeva, espécie de deus da poesia, e Graça Reis vive Sakhi, amiga e conselheira de Radha, entre outros personagens.

A ópera na Sala São Paulo foi apresentada em um concerto, ainda sem encenação, o que enfatizou o trabalho musical desenvolvido por Gil e Brizzi. Sob o aspecto estrutural, a ópera se confunde de fato com um ciclo de canções, borrando as fronteiras entre duas linguagens, que tensionam a palavra e a música. A canção rebenta-se, assim, na ópera.

"A proposta foi trazer o conceito operístico para o campo da música popular. Aldo é mais clássico, mais música de concerto, mas eu estou completamente afeito ao campo da música popular", disse o compositor à reportagem. "A tarefa era trabalhar com aquilo que no mundo da obra clássica se chama de árias."

RIQUEZA PERCUSSIVA

Gil não parecia ter a intenção de dialogar, de modo peremptório, com compositores operísticos. Seu orientalismo, no entanto, contrasta com títulos canônicos, do barroco à era romântica. Em "Amor Azul", o hinduísmo é a mais nobre fonte da sabedoria.

O resultado é uma apresentação, em dois atos, que transita entre a música de concerto de Brizzi e a arte popular de Gil. Está tudo lá - escalas orientais, que por vezes se anunciam em flautas debussystas, o sublime romântico e uma orquestração que inclui a percussão afro-brasileira.

Desse modo, não seria possível esquecer nomes, como o de Francisco Mignone e, sobretudo, o de Heitor Villa-Lobos, que tensionaram as fronteiras entre o erudito e o popular.

Tal paradigma modernista se concretiza, em "Amor Azul", na presença de Gil ao violão, o mais representativo dos instrumentos brasileiros.

Nessa extravagância musical, que não deixa de soar simples, o afoxé não está somente nos atabaques, mas em harmonia com os pizzicatti de seis contrabaixos, traço de um rigoroso trabalho empreendido por Brizzi.

A riqueza percussiva, aliás, é um dos trunfos de "Amor Azul". Se não se apresentam de maneira literal, ritmos que desaguam em Gil se insinuam ao longo das árias - podem soar como um baião ou um samba, sem nunca os ser de fato. O que surge, com clareza, é a bossa nova, num número que Gil apresenta, em voz e violão, numa economia caprichosa.

O canto de Gil contrasta com os solistas líricos, todos microfonados, o que retirou certa naturalidade interpretativa. Os cantores líricos apresentaram-se menos expansivos do que o habitual, levando a voz à fala, como na forma canção. Por isso, o libreto era compreensível em sua integralidade pelo público.

HINDUÍSMO E BANDA DE PÍFANOS

O texto foi feito pelo designer tropicalista Rogério Duarte, morto em 2016, inspirado nos textos sagrados do livro "Cântico dos Cânticos", poemas de Kalidasa e em "Gita Govinda", de Jayadeva. Na cultura indiana, a relação entre Krishna e Radha é uma representação da persistência e cumplicidade do amor.

Influência em Gil, o hinduísmo marcou também a contracultura dos anos 1960, em especial a fase mais madura dos Beatles —referência essencial para a obra do baiano.

Essa ópera-zen celebrou um amor puro, que atinge plenitude poética no encontro entre dois amantes.

Se iniciou a sua trajetória misturando as bandas de pífanos pernambucanas com as guitarras sujas do rock inglês, Gil agora transmuta o seu violão em uma orquestra sinfônica. Primeira ópera do tropicalista, "Amor Azul" pode ser também a última fronteira cruzada pelo baiano em sua trajetória artística definitiva para o Brasil.