‘Furiosa: Da Saga Mad Max’, de George Miller, pode ser lido de diversas maneiras. É a segunda parte da perfeita sinfonia de desordem que é o seu antecessor, “Mad Max, Estrada da Fúria”, realizado há nove anos. É um filme sobre as origens de um dos personagens mais emblemáticos, selvagens e até oportunamente feministas que o cinema recente produziu, Furiosa. (É aqui que vemos que Furiosa e Mad Max são as duas faces da mesma moeda, e por isso é lógico que o filme seja a resposta feminina ao original de 1980). Em 45 anos da série, é o quinto episódio de guerras apocalípticas que, na sua desproporção, acabaram por ser para nós a metáfora perfeita. É também a última oportunidade, por enquanto, de continuarmos felizmente sequestrados por um mundo de artifícios evocativos, febris, aterrorizantes, divertidos e absurdos (tudo ao mesmo tempo). E, acima de tudo, algo que faz parte da retina de qualquer espectador.

“Furiosa” viaja na direção oposta ao filme do qual é justificativa e espelho. É uma prequela, claro, um relato de origem, o germe da distopia no deserto, com elipses necessárias ao frenesi do ritmo da narrativa. Dá um salto para trás para nos contar de onde vem a estranha personagem Furiosa, trazida à vida muito perto da perfeição por Charlize Theron em 2015. Ou seja, dois anos antes de estourar o movimento Metoo que nos mantém ainda bem ocupados. A ideia é narrar o que aconteceu quando as coisas pararam de acontecer. Lembrem-se que, no apocalipse sem recursos que a saga propõe, a história parou, e parou a tal ponto que mesmo os filmes que nela se passam mal têm narração. Exemplo extremo é “Estrada da Furia/Fury Road”, que basicamente propõe uma viagem de ida e volta mais do que minimalista ao simples vazio.

Agora tudo está mais complexo, ordenado e, claro, mais autoconsciente. Miller sabe que não pode mais nos surpreender porque esgotou todas as possibilidades de surpresa com um filme que é, do começo ao fim, um grito único e extremamente surpreendente. Consequentemente, ele opta por organizar o filme em capítulos (cinco) para traçar um mapa físico onde situar a Cidadela, comandada pelo implacável Immortan Joe, a Fazenda de Balas e a Cidade da Gasolina. Mas a ideia também é criar um mapa moral, digamos assim, para mergulhar na ferida de seu personagem principal. Como é possível que Furiosa (agora a esplêndida e elétrica Anya Taylor-Joy), a libertadora das algemas, tenha sido anteriormente tenente do mais vilão de todos? Como é possível que o puro fosse anteriormente impuro? Onde estão suas feridas? Onde, a redenção? E é aí que entra o senhor da guerra Dementus (aqui, um Chris Hemsworth exagerado e jovialmente peculiar).

Aos 79 anos, George Miller expande a lenda de Mad Max com a parcela mais pensativa e ordenada da saga, mas sem perder o encanto extravagante e muito atual da harmonia febril do caos. Segundo seu roteiro, o apocalipse tem passado, e o futuro é uma mulher, antevisto no filme como uma reinicialização esplêndida a partir da guerreira Furiosa.

O diretor se preocupa em traçar as entranhas e motivações dos personagens pela simples razão de que é disso que se trata. E é justo reconhecer que a tensão avança em ondas e, às vezes, o filme oferece mais explicações do que alguém jamais havia solicitado. Mas o que conta é tanto a febre, que permanece intacta, quanto a sensação de reconhecimento. O mito que Miller começou a desenhar nos anos 1980 parecia ser uma possibilidade não tão distante assim, uma possibilidade. Agora, 45 anos depois, o mito é uma certeza, sem mais delongas, uma descrição de um universo compartilhado e, às pressas, da própria realidade em que caminhamos.

Não se pode falar de cenas ou sequências de ação na saga Mad Max porque é isso que são do início ao fim. Sim, é verdade, há alguns momentos em que o filme diminui e engrossa o enredo, mas tendem a ser os mais problemáticos. Todo discurso em “Furiosa” poderia ser evitado. Cada narração explicativa é desnecessária. É um filme sobre se movimentar, sobreviver, viajar pelo que resta do mundo tentando seguir em frente, superar traumas, vingar-se ou, simplesmente, escapar de algum veículo infernal que está perseguindo você. É verdade que o filme continua a dar o seu melhor não quando fala, mas quando se move. As cenas de ação são extraordinárias.

Seria difícil escolher um momento, embora eu tenha achado admirável todo o primeiro capítulo, que narra o sequestro de Furiosa quando criança e a tentativa de resgate de sua mãe, e a sequência que, durante as filmagens, ficou conhecida com o título de “Stairway to Nowhere”/Escada para Lugar Nenhum”, quinze minutos prodigiosos em que Miller demonstra que não há perseguição melhor do que aquela que sabe deslocar o olhar do espectador de um plano geral para um plano detalhado, de um objeto para um rosto, e encontrar nesses movimentos uma fluida e diáfana harmonia.

God Save the Cinema!