Você não pode superar o táxi como um conceito cinematográfico em busca do estudo do personagem. O espaço restrito do interior da cabine, com dois participantes separados pelo código semântico (?) de uma divisória de vidro, permite uma interação intimamente carregada, com dinâmicas de poder variáveis; a tarifa a pagar é o que regula, mas o motorista ao volante tem o arbítrio final. E então, em termos de exterior, as janelas tornam-se uma tela de cinema, exibindo vistas da cidade em uma sucessão de montagens. Finalmente, em termos narrativos, reais ou alegóricos, existe o conceito inerente de cada viagem.

O título em inglês desta viagem em Paris, “Driving Madeleine”, de Christian Carion (em exibição até quarta-feira 926), no Cine Ouro Verde), remete deliberadamente a “Driving Miss Daisy”, o filme vencedor do Oscar de 1989 e um melodrama seguro e respeitável sobre uma mulher branca idosa e seu motorista negro. Existem semelhanças superficiais, mas o francês Carion vai para um lugar diferente e mais sombrio.

O taxista parisiense criado pelo quarentão Charles tem problemas: está profundamente endividado, está quase prestes a perder a carteira de motorista por acumular infrações de trânsito e raramente vê a esposa e a filha pequena. Quando Madeleine, uma senhora de 92 anos, ágil e teimosa, lhe promete dinheiro extra para levá-la pela cidade durante horas a fio, ele aceita o trajeto, a contragosto. Depois de sofrer uma queda grave, a gentil Madeleine está indo passar seus ultimos dias num lar de idosos. Mas antes quer fazer uma última viagem pela sua amada Paris.

Enquanto Charles a leva pela cidade, memórias e lembranças são acionadas em Madeleine (talvez Carion e o co-roteirista Cyril Gély a tenham batizado em homenagem ao famoso bolinho imortalizado por Proust), que são retratadas em flashbacks. A história de Madeleine tem muitas reviravoltas. Renaud cria a personagem como uma sobrevivente; alguém que aprendeu a suportar. Seu calor é totalmente irresistível, descongelando ou desconsolando Charles. Ele não consegue ver o caminho para sair da floresta. Ela se torna sua guia para que finalmente nos perguntemos quem está direcionando quem e para onde.

TRAJETÓRIA

Nos anos 1940, uma jovem Madeleine trabalha para a mãe como costureira em um teatro, onde se apaixona por um soldado americano, fica grávida e logo de coração partido quando ele retorna aos Estados Unidos. Ela então se casa com o bonitão Ray (que logo começa a espancá-la na frente de seu filho, Mathieu). Depois de suportar o abuso por um tempo, sua violenta represália a leva a julgamento, onde é condenada a 25 anos de prisão. Ela sai depois de 13 anos cumpridos. Pouco depois, ela se reencontra com o filho já adulto, agora um fotógrafo/jornalista prestes a cobrir a Guerra do Vietnã.

Você pode adivinhar o que acontece a seguir.

O diretor Carion obviamente abraça os artifícios que ele construiu na vida dramaticamente agitada de Madeleine. Por um lado, permite que o taxista Charles perceba que seus próprios problemas são menos importantes em comparação, o que ajuda a unir os fios dramáticos de maneira organizada e, deve-se admitir, de forma satisfatória no final. Por outro lado, a trama esquemática inclui momentos que aparentemente existem apenas para martelar ainda mais emocionalmente Madeleine.

Logo no início, ela pede a Charles que pare, depois sai e caminha para ler, entre lágrimas, uma placa em homenagem aos homens ex-combatentes, incluindo seu pai, assassinados pelos nazistas. Parece que o roteiro acumula tragédias, mesmo quando Carion dirige uma cena relativamente contida. Mais esclarecedora é a recriação de uma época, não há muito tempo, em que as mulheres, especialmente as que casadas, tinham poucos ou nenhum direito legal, por mais angustiantes que fossem suas vidas com os seus maridos.

“Conduzindo Madeleine” é filme cujo enredo e encenação são muito simples, onde quase todo o mérito do filme vai para a dupla protagonista. O formato é correto. Dois estranhos, num dia, tudo o que fazem é conversar, com paradas ocasionais para um sanduíche ou um sorvete. Ambas as vidas foram mudadas. Claro que este é um encontro entre a velha Paris e a nova Paris, e de que forma a vida das mulheres mudou. O filme tem doses de humor misturadas com momentos dramáticos. Mas no geral é emocionante e desperta o espectador. Não é filme para ficar na história do cinema, mas alegra a perspectiva de humanidade e convida a repensar a vida.

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