A frase do psicanalista Sándor Ferenczi, "Raspem o adulto e vocês encontrarão a criança", oferece uma visão potente sobre a complexidade da mente adulta e sua origem nas experiências da infância. Para a psicanálise, o adulto é a continuidade da criança, e muitas vezes, os traumas, fantasias e defesas que se cristalizaram nos primeiros anos de vida permanecem atuantes, ainda que sob formas mais sofisticadas. Essa perspectiva nos leva a entender que grande parte dos conflitos vividos por adultos são ecos, disfarçados, das vivências infantis.

Melanie Klein, analisanda de Ferenczi, em seus estudos sobre a mente infantil, mostra como o mundo interno da criança é povoado por fantasias inconscientes que moldam suas relações com o mundo externo. Klein mostra que, desde muito cedo, o bebê lida com ansiedades profundas, como o medo da aniquilação, e se utiliza de mecanismos primitivos de defesa, como a cisão e a idealização, para suportar essas angústias. Esses mecanismos não desaparecem na vida adulta, mas são reformulados, muitas vezes aparecendo de maneira inconsciente nos relacionamentos e nos sintomas.

Por exemplo, podemos observar um paciente que, como adulto, apresenta dificuldades em confiar nas pessoas ao seu redor, vivendo em constante estado de descnofiança. Sob a superfície desse comportamento adulto, encontramos, ao “raspar” as camadas de sua personalidade, as marcas de uma infância marcada pelo sentimento da ausência emocional dos pais. Essa criança interna aprendeu a se defender da dor do desamparo através da desconfiança e da criação de uma fantasia inconsciente de que o mundo era perigoso e hostil. Essa fantasia, que na infância serviu como defesa, permanece viva na vida adulta, cristalizando-se em formas de relacionar que dificultam vínculos genuínos.

As fantasias inconscientes infantis não são simples recordações do passado, mas influências ativas na vida mental. O que o paciente vive agora – a desconfiança no presente – é uma reencenação de antigas angústias que não foram suficientemente elaboradas. A integração dessas partes cindidas do self é fundamental para que o adulto possa lidar com a realidade de maneira menos defensiva e mais criativa.

Outro exemplo clínico pode ser o de uma pessoa que, em sua vida adulta, apresenta fortes sentimentos de culpa, mesmo quando não há um motivo claro. Ao explorar sua história na análise, percebe-se que esses sentimentos de culpa estão profundamente enraizados em suas experiências infantis de rivalidade com um irmão mais novo, com quem acreditava ter competido pelo amor da mãe. Na infância, essas emoções intensas de ciúmes e agressividade foram reprimidas e transformadas em culpa. Agora, como adulto, essa culpa aparece de forma difusa, muitas vezes desproporcional aos eventos reais, mas sempre conectada às antigas fantasias infantis de ataque e destruição.

Esses exemplos mostram como as feridas e ansiedades infantis permanecem vivas e atuantes no adulto. O processo analítico, conforme propôs Ferenczi, envolve desenterrar essas camadas e permitir que o paciente entre em contato com essa criança ferida, com suas fantasias e angústias. Esse contato, porém, não é apenas para recordar, mas para transformar. Ao reviver essas experiências, sob o amparo de uma relação analítica, o adulto pode começar a elaborar o que antes era impensável ou insuportável.

Assim, ao “raspar” o adulto, encontramos a criança não como uma entidade separada, mas como a origem viva e pulsante das defesas, ansiedades e fantasias que continuam a moldar a vida psíquica. A transformação, nesse sentido, não é uma negação da infância, mas um reconhecimento profundo de suas marcas e uma reconfiguração das respostas emocionais que surgiram para lidar com essas primeiras experiências. A análise oferece um espaço onde essa criança pode finalmente ser vista, ouvida e, acima de tudo, transformada, permitindo que o adulto se reconcilie com suas próprias raízes psíquicas.

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