Hoje é dia de assistir David Lynch. Mullholland Drive é o filme e ele está disponível em várias plataformas de streaming aqui no Brasil. Entre tantas coincidências que marcam o dia 11 de setembro de uma maneira quase paranóica, a data de lançamento do filme dirigido por Lynch e o ataque às Torres Gêmeas acontecendo exatamente ao mesmo tempo é um sugestivo capricho histórico que nos autoriza momentaneamente o ensaio como gênero dissociativo, um delírio. Uma vez que ambos os acontecimentos se inscrevem no âmbito da desrazão, o colapso do real os une no calendário e na dimensão simbólica.

É significativo o fato do título do filme de Lynch ter saído no Brasil como “Cidade dos Sonhos”. Um certo vício pedagógico de querer explicar e demarcar uma chave interpretativa para o espectador brasileiro que muitos distribuidores usam como expediente desde sempre.

No filme Lynch arremessa o público diretamente para o centro de um pesadelo sem muitas explicações – a experiência aos poucos vai se acomodando como plausível em suas disjunções ao que deixam perceber como um discurso onírico.

Mulholland Drive é um filme que faz transbordar qualquer possível linearidade narrativa e esafia o público a navegar por um labirinto psicológico onde os limites entre sonho e realidade, identidade e ilusão, estão constantemente se desfazendo. A trama gira em torno de Betty Elms, uma jovem aspirante a atriz que se muda para Los Angeles, e Rita, uma mulher misteriosa que perde a memória após um acidente de carro na Mulholland Drive. O que começa como um thriller noir se transforma em uma exploração da psique, onde Lynch desconstrói a narrativa convencional e apresenta uma realidade fragmentada e perturbadora.

O filme questiona a percepção de verdade e a identidade como coisas fixas: personagens mudam de nome, as situações invertem-se sem nenhuma explicação prévia muito clara, e o público é conduzido por um caminho de dúvidas, reflexões e sentimentos de desconforto.

Lynch, famoso por seu estilo visual e narrativo, cria uma atmosfera de desorientação e estranheza que coloca o espectador em um estado constante de incerteza. Assim como o sonho, o filme é algo que foge da lógica linear e nos desafia a encontrar significado em meio ao caos.

Sobreposto em contraste com a atmosfera onírica de Mulholland Drive, o ataque de 11 de setembro foi uma tragédia profundamente real e brutal, que destruiu fisicamente um dos marcos mais emblemáticos da ordem neoliberal mundial liderada pelos Estados Unidos e causou a morte de milhares de pessoas. Contudo, assim como no filme de Lynch, o impacto emocional e psicológico desse evento provocou uma ruptura no entendimento da realidade. O choque coletivo, a sensação de vulnerabilidade e a perplexidade com o que acontecia em tempo real na televisão geraram uma espécie de surrealismo vivido.

Eu me lembro muito bem de ter percebido esse acontecimento histórico num primeiro momento como algo com algum sentido religioso. Tinha ido com minha esposa a uma home center (uma dessas lojas enormes com produtos para a casa inteira). Na época havia um modelo de aparelho de TV de tubo que se chamava Jumbo por conta do tamanho do eletrodoméstico. Um desses estava ligado na loja e um grupo de vendedores se perfilava diante dele numa atitude um tanto constrita. Todos estavam de terno (era o uniforme da loja).

Vi por entre essas pessoas que na TV se mostrava alguém de terno também falando a partir de um púlpito. Pensei “devem estar fazendo alguma oração ou algo do tipo como motivação para o dia na loja”. Era bem cedo e a loja tinha acabado de abrir. Foi quando a imagem da TV cortou para um plano aberto mostrando um avião se chocando contra as Torres Gêmeas. Foi só aí que percebi que não era necessariamente algo religioso e que aquela figura que falava do púlpito era na verdade algum porta-voz do governo americano explicando que o presidente estava a salvo em algum bunker ou coisa parecida.

O colapso das Torres Gêmeas não foi apenas a destruição de dois edifícios, mas também um golpe devastador nas certezas que muitos mantinham sobre segurança, poder e ordem mundial. Naquele dia, o mundo foi confrontado com a fragilidade das estruturas aparentemente sólidas da civilização ocidental. A América, até então vista como uma nação inabalável e distante de ameaças em seu território, foi subitamente exposta à violência de uma forma visceral. O que antes parecia seguro e distante foi desconstruído diante dos olhos de todos. Assistimos o real colapsando em um discurso quase onírico.

Assim como Mulholland Drive subverte as expectativas narrativas, o 11 de setembro subverteu a percepção de segurança e invulnerabilidade do Ocidente. Ambos os eventos, cada um em seu contexto, expuseram a instabilidade das certezas que antes se mantinham intactas.

METÁFORA

Mulholland Drive pode ser visto como uma metáfora para a psique fraturada, onde as fronteiras entre o real e o imaginário são constantemente transgredidas. De forma similar, o 11 de setembro fragmentou a visão que o mundo tinha dos Estados Unidos e da ordem mundial. Assim como o filme de Lynch leva o espectador a questionar a veracidade dos eventos que presencia, o 11 de setembro levou muitas pessoas a questionar as narrativas que sustentavam a política global, as questões de segurança e as relações internacionais. O mundo nunca mais foi o mesmo. Após os ataques, houve uma sensação de que o mundo entrava em uma nova era, onde as certezas do passado haviam sido destruídas e substituídas por um futuro imprevisível. O medo de novos ataques, as respostas militares e políticas dos governos e as mudanças nas leis de segurança contribuíram para uma sensação de desorientação, muito semelhante ao estado de confusão e incerteza que permeia o filme de Lynch.

Além disso, tanto o filme quanto o 11 de setembro tocam em uma questão fundamental: a fragilidade da memória e da identidade. Em Mulholland Drive, a amnésia de Rita simboliza a perda de conexão com o passado e com quem ela é. Após o 11 de setembro, a sociedade americana (e mundial) foi forçada a reexaminar seu senso de identidade coletiva. Quem eram os Estados Unidos, e o que eles representavam? Como a identidade nacional e a política externa seriam moldadas após o ataque? Tanto Lynch quanto o evento do 11 de setembro utilizam o medo e o desconhecido como forças motrizes.

Em Mulholland Drive, o medo surge de uma fonte interna — a inquietação psicológica, o confronto com os próprios desejos e a percepção de que a realidade é ilusória. Já no 11 de setembro, o medo vem de uma fonte externa — o terrorismo, a violência, e a percepção de que algo pode atingir a estrutura do real a qualquer momento e lugar. Ambos convergem em uma sensação de impotência diante do caos. O espectador de Mulholland Drive se vê preso em um quebra-cabeça narrativo sem solução clara, assim como o público global foi tragado pelo caos das imagens ao vivo dos ataques, sem conseguir entender de imediato o que aquilo significava para o futuro.

Em ambos os casos, há uma desconstrução do conhecido, e o resultado é uma sensação de incerteza que ressoa por muito tempo depois que os eventos terminam.

Tanto Mulholland Drive quanto o 11 de setembro deixaram suas marcas no tempo. O filme de David Lynch é considerado uma obra-prima do cinema contemporâneo, continuando a ser analisado e interpretado por críticos e cinéfilos que tentam decifrar seus mistérios. Ele é uma exploração do inconsciente, uma meditação sobre a própria natureza do cinema e da identidade. O 11 de setembro, por outro lado, redefiniu a política mundial e as relações internacionais. Ele trouxe novas discussões sobre terrorismo, segurança e vigilância, além de influenciar a arte, o cinema, a literatura e a música, à medida que o trauma coletivo foi processado ao longo dos anos.

Filmes, séries e documentários frequentemente exploram a paranoia, o medo e a desconfiança que emergiram após os ataques, muitos deles usando estéticas e narrativas que evocam o surrealismo e a desorientação que Lynch domina tão bem.

Embora Mulholland Drive e o 11 de setembro sejam eventos de naturezas radicalmente diferentes - um é um filme disjuntivo e fragmentado e o outro uma tragédia real - ambos se encontram em um ponto comum: o colapso das estruturas, sejam elas narrativas ou físicas, e a desconstrução da realidade como a conhecemos.

O filme de Lynch, com sua abordagem onírica, e o trauma real do 11 de setembro provocam reflexões sobre o que é real, o que é ilusório, e como lidamos com a incerteza diante do caos. Ao refletir sobre ambos, somos convidados a reavaliar a maneira como entendemos a ordem, a memória e a identidade em um mundo cada vez mais incerto.

Outras coincidências paranoicas do 11 de setembro

Golpe de estado no Chile – morte de Allende, 1973

Nascimento de Theodore Adorno em 1903.

Moby Dick, de Hermann Mellville foi publicada em 11 de setembro de 1851.

Início da construção do Pentágono 11 de setembro de 1941.

11 de setembro de 1922 a Pérsia se torna o estado soberano do Irã.

Lançamento do álbum Bridge Over Troubled Water por Simon & Garfunkel em 1970.

O fim do Governo Militar no Brasil em 1985 - Lei da Anistia foi promulgada. Este evento marcou o início da transição para a democracia no Brasil.

Morte de Diana, Princesa de Gales em 1997.