Lou Reed é um desses raros fenômenos humanos que você não pode ignorar, mesmo que queira. Sua música é um calvário de distorção que esmaga qualquer ilusão de inocência. Sua vida? Um teatro de horrores e delírios vestidos com jaquetas de couro preto, perfurando o espírito com agulhas sonoras. Will Hermes, em sua biografia, tenta decifrar esse enigma que Reed personificava. "Lou Reed – O Rei de Nova York" é um lançamento da editora Best Seller, do grupo Record, com a tradução excelente de Lívia de Almeida.

O barato da treta é o seguinte: como você pode capturar a essência de alguém que sempre se escondeu atrás de suas próprias máscaras, que transformou a dor em performance e o niilismo em arte? Hermes tenta, e sua tentativa é válida, quase heróica. Ele mapeia o trajeto de Reed como quem documenta a autodestruição de uma estrela em plena supernova. Brooklyn, Long Island, o Lower East Side, o ventre sujo de Nova York – cada cidade, cada fase da vida de Reed, é um fragmento de um mosaico que nunca se completa. Reed viveu como um samurai da decadência urbana, empunhando sua guitarra como uma espada afiada, dilacerando não apenas seus inimigos, mas a si mesmo.

Will Hermes é, sem sombra de dúvida, um dos cartógrafos mais habilidosos da selva urbana que é Nova York, especialmente quando se trata de mapear as trilhas sinuosas entre a cidade e o rock. Ele entende que Nova York não é apenas o cenário, mas o próprio sangue que pulsa nas veias do rock'n'roll. Hermes consegue captar como as ruas sujas, os becos iluminados por néon e o caos vibrante da cidade são os ingredientes fundamentais que deram vida a movimentos musicais inteiros. Ele respira esse asfalto, e, com uma precisão cirúrgica, disseca as interações entre os músicos e a cidade como se fosse uma coreografia caótica, onde cada guitarra distorcida é uma batida do coração de Manhattan. A cidade molda o som, e o som transforma a cidade, e Hermes captura essa alquimia com uma clareza que poucos conseguem.

Sua expertise não vem só de uma observação externa, mas de um entendimento visceral de como Nova York devora e transforma seus habitantes. Para Hermes, o rock nova-iorquino é mais do que música: é uma expressão bruta da sobrevivência numa cidade que, assim como seus artistas, é implacável e magnética. Ele traça as rotas dos músicos pela cidade como quem escreve um poema urbano, onde cada esquina tem uma história de rebeldia, decadência e renovação. Desde os becos onde o Velvet Underground explodiu com a estranheza de Reed até os palcos míticos que engendraram o punk de CBGB, Hermes faz o impossível: transforma o barulho caótico da cidade em uma sinfonia estruturada, uma peça de arte que não pode ser compreendida sem Nova York como pano de fundo.

O crítico Will Hermes moderando o painel "Dando voz à transgressão em de abril de 2015 num evento chamado Pop Conference no EMP Museum, Seattle, Washington
O crítico Will Hermes moderando o painel "Dando voz à transgressão em de abril de 2015 num evento chamado Pop Conference no EMP Museum, Seattle, Washington | Foto: Wikimedia commons/ Divulgação

NY: A MUSA INQUIETA

Nos outros livros de Hermes, Nova York também é retratada como a musa inquieta que nunca para de se transformar, o campo de batalha onde o rock e a cidade se enfrentam, se confundem e renascem. Em “Love Goes to Buildings on Fire”, por exemplo, ele explora como os anos 70 forjaram o DNA musical da cidade, um caldeirão fervente onde o punk, o hip hop, o jazz e a música clássica moderna entravam em colisão e combustão. Para Hermes, Nova York é mais do que um cenário: é uma força viva que molda sons, como o ferro sendo forjado numa fornalha brutal. Cada nota reverbera a tensão da cidade, e Hermes traça essas faíscas criativas com uma sensibilidade que não apenas compreende, mas também sente o ritmo urbano em cada sílaba. Seu trabalho vai além da simples documentação; ele nos mergulha na vibração crua e desesperada que só Nova York — em seu caos eterno — poderia inspirar.

Will Hermes, no título "Lou Reed: O Rei de Nova York", sintetiza a visão de Reed como mais do que um mero músico — ele é o soberano de uma cidade que moldou sua arte, tanto quanto ele moldou a própria cidade. Para Hermes, Reed não foi apenas um ícone do rock, mas uma força bruta que personificava o espírito indomável de Nova York. Ele era a batida suja das ruas, a poesia escondida nos becos, o som de uma cidade que nunca parava. Ao nomeá-lo "rei", Hermes capta a ideia de que Reed, com sua música e sua vida, não governava apenas o palco, mas as profundezas culturais de uma Nova York caótica e insana. Reed, em cada fase de sua vida — glamouroso, misantrópico, sempre em guerra consigo mesmo — encarnava a rebeldia, a liberdade, o desespero e a beleza sombria da cidade que o fez rei.

Lou Reed nunca quis sua redenção. Isso fica claro em cada página. Ele flertava com a morte, com o grotesco, com a perversão – e sabia muito bem disso. Ele construiu sua persona como uma obra de arte distorcida, jogando com as expectativas de um público que ansiava tanto por seu fracasso quanto por seu sucesso. E se há algo que as mais de 500 páginas do livro de Hermes revelam, é que Reed entendeu cedo a farsa da fama, a piada cósmica de viver sob os holofotes de uma cultura obcecada com o glamour da autodestruição.

Mas vamos ser francos: Lou Reed não estava interessado em agradar ninguém. Sua arte era um espelho rachado, refletindo o lado mais sombrio da alma humana. Hermes escreve como se andasse por um campo minado, cuidadosamente evitando os estilhaços deixados por Reed em sua trilha. No entanto, há uma espécie de reverência sufocante aqui, como se o autor estivesse constantemente tentando justificar os excessos de seu objeto de estudo. A verdade é que Reed não precisa de justificativas. Ele era o caos em carne viva, um buraco negro emocional que sugava tudo ao seu redor e cuspia de volta algo que a maioria das pessoas preferia ignorar.

ADORAÇÃO E CRÍTICA

Há um certo fascínio mórbido em ver como Hermes se equilibra entre a adoração e a crítica, tentando capturar o que Reed significava para a música, para a cultura, para o próprio conceito de contracultura. Reed, como se lê nas entrelinhas, não era apenas um músico; ele era um símbolo de tudo que está quebrado no mundo moderno. E ele sabia disso. Ele gostava disso. Cada acorde dissonante, cada letra carregada de veneno, era uma declaração de guerra contra a normalidade, contra o conforto, contra o conformismo.

Mas o que Hermes talvez não compreenda – ou compreende, mas hesita em admitir – é que Reed não estava apenas se rebelando contra o establishment. Ele estava se rebelando contra a própria existência. E aqui, ele e Cioran dançam juntos, dois niilistas em lados opostos de um abismo, acenando ironicamente um para o outro. Reed usava o rock para gritar no vazio, uma tentativa desesperada de tornar o insuportável suportável, mas sempre com a consciência de que o som de sua guitarra não poderia afugentar o vazio que o perseguia.

Hermes nos leva por essa jornada com a destreza de um cirurgião cultural, dissecando cada fase da vida de Reed com precisão quase clínica. Ele explora as origens de Reed no Brooklyn, o período formativo com o Velvet Underground, sua associação com Andy Warhol – o papa do vácuo pop. Warhol, assim como Reed, sabia que não há nada além do espetáculo. E Lou Reed transformou essa filosofia de vida em sua assinatura, sua arma, seu escudo.

DEMÔNIO URBANO

Os momentos mais poderosos da narrativa de Hermes são aqueles em que ele não tenta suavizar as bordas ásperas de Reed. Porque Reed era um homem de extremos. Não havia lugar para o meio-termo em sua música ou em sua vida. Ele mergulhava de cabeça no que o assustava – o vício, o sexo, a violência, o desespero – e emergia com algo cru, feio, mas de uma beleza devastadora. Era como se ele estivesse sempre em guerra com o mundo, e a única maneira de lutar fosse com sua guitarra.É nesse ponto que o livro de Hermes realmente brilha: ele não se ilude com a ideia de que Reed estava tentando nos salvar. Reed não era um redentor. Ele era um demônio urbano, caminhando pelas ruas de Nova York com a certeza de que a redenção era uma ilusão barata vendida em prateleiras comerciais. Hermes tenta, em certos momentos, humanizar Reed, apresentando seus momentos de fragilidade, seus fracassos, suas lutas pessoais. Mas Reed, sempre o mestre da contradição, transformava cada uma dessas quedas em combustível para sua própria mitologia.

E no final, qual é o legado de Lou Reed? Hermes sugere que sua importância está na influência cultural, na maneira como ele desafiou os limites do que o rock’n’roll poderia ser. Mas isso é apenas a superfície. O verdadeiro legado de Reed é mais sombrio. Ele nos mostrou que o caos não é algo a ser temido, mas abraçado. Que a dor, o fracasso, a escuridão, são parte do que significa ser humano. Reed não queria que o amássemos; ele queria que enfrentássemos o abismo ao nosso redor, assim como ele fez, sem piscar.Hermes nos oferece uma visão abrangente de Lou Reed, mas no final das contas, Reed escapa de qualquer tentativa de definição. Porque, como o próprio Reed uma vez disse: "There's no truth in rock'n'roll." E talvez seja essa a única verdade que precisamos saber. Reed era uma mentira gloriosa, um ato de ilusão magnífico. E Hermes, como um arqueólogo cavando entre os destroços, revela o que já sabíamos: Lou Reed era a personificação do caos. E nós amamos cada segundo disso.

Imagem ilustrativa da imagem Biografia de Lou Reed é o livro mais rock’n roll do ano
| Foto: Divulgação

SERVIÇO

"Lou Reed - O Rei de Nova York"

Autor Will Hermes

Tradução de Lívia Almeida

560 páginas

Editora Best Seller