Moro no centro da cidade, no coração pulsante dos edifícios, nos quais a vida se verticaliza, tendo com a última paisagem um mar de horizontalidade azulada, a urbanidade se dilui no espaço e já não se sabe onde termina a terra e onde começa o céu.

A vida equilibra-se em varandas, na vegetação típica dos prédios que ora enrosca-se como trepadeira delicada, ora como vasos esquecidos que ainda dão flores, apesar da secura da terra há muito tempo abandonada pelas mãos dos primeiros jardineiros. Vovozinhas um dia plantaram gerânios e petúnias, filhos e filhas mantêm os vasos como memória, mas já não regam as plantas como antigamente.

O impulso vital de fazer jardins suspensos parece ter cedido à pressa de morar na cidade quase grande. Você aí, que tem um vaso na sacada, já observou se o botão de ontem hoje floresceu como a anunciação da primavera? Quem não tem olhos para os jardins pequenos, jamais chegará ao Éden, última promessa de paraíso.

Do prédio em que moro vejo os edifícios em frente, não tão longe que não possa acompanhar a vida. A existência da vizinhança não depende de binóculos que dispenso, pois uso a imaginação. À noitinha, luzes se acendem numa sincronia de parque de diversões, roda gigante de pequenas lâmpadas amareladas, chuvisco de neon, luz de televisão na sala ocupada por olhos atentos que não vejo.

A fixação do mundo moderno é pelas telinhas. Pescoços esticados para o computador, travados nos celulares e nas dores cervicais, fixos na TV para ver a opinião dos visitantes noturnos sobre a política, interessados na “moça do tempo” mais que nas estações. A vida em carne e osso está se dissipando, conversas nas calçadas são tão remotas quanto o último sinal de um quark. A comunicação mais sincera está no elevador, no bom dia apressado, no boa noite tedioso de quem se desacostumou a falar com gente e só responde a vozes virtuais.

Dentro dos edifícios a humanidade digital cumprimenta amigos e parentes por mais um aniversário. Flores de plástico foram substituídas por emojis, sorrisos congelados, carinhas simpáticas, a vida digitalizada no conglomerado de janelas. Quem tem olhos para ver ainda sabe que a vizinha, do outro lado da praça, acorda às 7h30, quando as cortinas brancas começam a voar como uma bandeira no último dos edifícios à mostra. As luzes da noitinha e as cortinas das manhãs são sinais remotos da vida comunitária, aprisionada em telinhas, nas quais é bonito ver a vida dos bairros mais pobres, com suas torneiras e afeições sempre abertas.

Nos edifícios e condomínios, cortinas esvoaçantes e luzes minúsculas funcionam como o sinal de fumaça do último esforço de vida gregária. Há muito tempo, o mundo foi envidraçado e foram construídos muros que filtram olhares e ruídos.

No centro, a conversa do trânsito é a mais longa e a única que não se interrompe. No mais, um vozerio difuso dá conta de que crianças ainda chutam bolas, mas há cada vez mais silêncio e menos gritos de gol. Os últimos sinais da vida – luzes, cortinas, buzinas, torcidas e gargalhadas – são encobertos pela falta de comunicação plena. As pessoas, como os vasos, precisam de regas constantes para darem flores. Mas os gerânios ressecados em sacadas vazias dão conta de que vida urbana é um lagarto que toma o sol de rotina e à noite esconde-se nos edifícios, entre pedras e torres, blocos de concreto que representam o peso em que se converteram as alegrias simples, das cercas permeáveis que separavam quintais , não pessoas, no tempo em que a vizinhança se enxergava, entre os balaústres carregados de flores.

Os pássaros ainda se balançam nos fios, última gangorra poética no perfil concreto do centro da cidade, onde a vizinhança se cala e permanecemos quase vivos por dez, vinte, trinta anos, ou pela eternidade. Para ouvir o coração urbano é preciso encostar mais ouvidos no seu peito.

*Crônica publicada originalmente em julho de 2022 e que integra o livro "A Cidade na Retina" a ser publicado em outubro.