Nossa editora de Cultura, Célia Musilli, irrita-se com vizinhos lojistas que, no Calçadão do século 21, ainda insistem em colocar caixas de som na porta e alguém com microfone convidando a entrar. Se fosse apenas brega, seria fácil de tolerar para os passantes, mas para os vizinhos torna-se um tormento. O som indevido, indesejado e contínuo vai “entrando na gente” e gerando uma irritação que vai se agravando, até o sofredor sonoro passar a sofrer até por antecipação, prevendo e já sofrendo o que sabe que todo dia ocorrerá.

Quando morei no Calçadão nos anos 90, a barulheira era de sindicalistas, eventos, pastores, vendedores, todos se achando no direito de incomodar os outros, até graças ao silêncio dos incomodados. Havia até uma estridente marcha religiosa de manhãzinha, com o regozijo dos fiéis soando como escárnio à cidadania dos moradores. Protestei, me botando em campanha, enviando cartas abertas ao bispo, ao conselho de pastores, poderes públicos e autoridades, procurando a imprensa e até abordando alguns barulhentos – como o pastor-só, que, com bíblia numa mão e megafone na outra, discursava horas para ninguém. Um dia lhe apontei que só um cachorro vadio o ouvia, e perguntei se não estaria assim desperdiçando as lições bíblicas, e ele não mais voltou.

Ganhei então até apelido, de que só soube quando alguém acenou: - E aí, Ouvidor do Barulho?

Nisso de som o Calçadão civilizou-se, mas alguns barulhentos continuam porque a democracia tem duas fraquezas que andam juntas, os abusos ignorantes e a omissão permissiva. Os abusantes fazem o que lhes convém, ignorando os outros e as leis, e assim “reinando” no ambiente, reproduzindo o comportamento dos antigos reinados de antes da democracia, quando um rei mandava e todos tinham de obedecer. Nem adianta dizer a um desses reizinhos que não tem esse direito, quem se acha rei não vê ou ouve a realidade. Ou veriam que o mesmo barulho que julgam indispensável pode estar há tempo mais afastando que atraindo gente, mas a insensatez não pode ser proibida...

Entretanto é proibido o som alto, poluição sonora ou só barulho mesmo, como se pode chamar todo som que não queremos e nos é imposto - é isso não é proibido à toa, mas devido aos muitos danos que causa, basta acessar na net “danos causados por poluição sonora” (e é também por isso que nos ambientes de trabalho barulhentos são obrigatórios protetores de ouvido).

A ignorância sobre os danos profundos do som alto já se vê na diferença entre o presto atendimento policial a casos de violência ou ferimentos, e o atendimento demorado e indisposto em casos de barulho. É como se ouvidos e cérebro atingidos não fizessem parte do corpo e a barulheira não ferisse emocionalmente, tirando a paz e infernizando a vida.

A comunidade também muito se omite, como se destinada a incorporar tudo de ruim que surja,. Há até os que falam que “barulho é progresso” e que os incomodados é que devem se mudar... Por isso os incomodados como Célia devem é reclamar mesmo, senão os reizinhos do barulho interpretam o silêncio como permissão ou até apoio, e irão abusando mais e mais, até o Calçadão virar um feirão bregão, onde os próprios lojistas acabarão reclamando do esvaziamento...