A infância enfileira dias inesquecíveis. Como quando a mãe me levou para tomar sorvete com um golinho de conhaque, crendice que livraria a criança de gripe e resfriados no inverno (os adultos deveriam tomar uma dose inteira). Me achei um homenzinho diante de meu copinho de conhaque. Afinal, era o que bebiam os peões mais abonados da nossa Pensão Alto Paraná, então dei minha golada, seguida de tanta tosse e engasgo que alguém falou pois é, se não matar há de curar. Nem lembro do sorvete, mas o conhaque foi inesquecível.

Era o ano de 1955 em que tanta coisa aconteceu – a morte de Getúlio, a primeira geada negra, a pavimentação da Rua Maranhão onde a molecada jogava búricas e pião e, de um dia para outro, os paralelepípedos tomaram conta do nosso chão!

Ali era nosso mundinho de disputas. Que glória voltar para casa com o embornal cheio de búricas, e que arraso perder um pião campeão! Mas mais arrasante foi ver que os piões não giravam sobre paralelepípedos, onde também não se conseguia escavar as locas para o jogo de búricas. Nos sentimos perdidos ao perder nossa rua!

Pensão Alto Paraná, ao centro, tio Clério Pellegrini
Pensão Alto Paraná, ao centro, tio Clério Pellegrini | Foto: Arquivo familiar

Mas logo achamos um novo território: na quadra acima, onde hoje é o Royal Shopping, havia uma oficina da Viação Garcia, num grande terreno com árvores ao fundo. A meninada pulava o muro para trepar nas árvores e exibir habilidades de Tarzã, inclusive se lançando em voos pelo nosso cipó, uma corda com dois nós, um para apoiar os pés, outro para agarrar com as mãos. Num dia em que quis me exibir demais, caí e me esfolei, cheguei em casa chorandinho e a mãe inesquecivelmente falou ué, tá chorando por que? Macaco que muito pula quer chumbo...

Mas nos domingos o trânsito na rua sossegava, então a meninada jogava bétis, parando o jogo para algum carro passar. Quando uma bolada atingia vidraça, a molecada sumia no fundo dos quintais, para fazer casamatas e trincheiras de tijolos ou submarinos de caixotes, enquanto nas casas as meninas brincavam com suas bonecas. Um dia, um menino maior apareceu com um belo estilingue e nos deixou atirar pedras à vontade. Peguei uma boneca de minha irmã para servir de alvo e consegui quebrar sua cabeça, ganhando da mãe uma surra também inesquecível.

Igualmente inesquecível foi o dia de tomar purgante. O pai me acordou ainda cedinho, e, como a casa ainda não tinha geladeira, mostrou que tinha comprado um filé agorinha mesmo no açougue recém aberto. Fritou aquele bifão na frigideira, botou no prato e falou que eu podia comer inteirinho mas só depois de tomar a garrafinha de purgante também inteirinha. Tomei aquele troço amargo que só, depois comi o bife, ele olhando com orgulho.

Quando a mãe levantou, perguntou se eu tinha tomado todo o purgante. Inteirinho, ele falou, eu tinha tomado o purgante inteirinho como um homem mesmo. Que bom, ela falou, vamos ver se faz efeito. E fez efeito mas, mesmo sentado no vaso com a barriga revirando, pela primeira vez eu me senti um homem, um homem mesmo. Inesquecível.