Desde rapazola me intriga, em rodas de samba, o samba-canção A Volta do Boêmio pois, começando a escrever poesia, prestava atenção na letra das músicas. Já agora, em aniversário em casa de amigo, vi duas sobrinhas suas cantando de boca cheia essa música de Adelino Moreira - que em 1957, cantada por Nelson Gonçalves, chegou a vender um milhão de discos, numa época em que os grandes sucessos só chegavam a um décimo disso.

Quando a roda de samba parou pra se cantar parabéns e comer o bolo, comentei com as duas moças que é uma música misteriosa. Elas perguntaram por que, expliquei verso a verso.

Começa com o boêmio anunciando que voltou à boemia como se ela fosse uma instituição até com burocracia: “Boemia, aqui me tens de regresso / e suplicante lhe peço / a minha nova inscrição. / Voltei pra rever os amigos que um dia / eu deixei a chorar de alegria / me acompanha o meu violão” (mas por que os amigos ficaram chorando de alegria quando ele deixou a boemia? Ou não entendi direito?)

Continua o boêmio falando à boemia: “Sabendo que andei distante / sei que essa gente falante / vai agora ironizar: / Ele voltou, o boêmio voltou novamente / partiu daqui tão contente / por que razão quer voltar?”

E o boêmio complicantemente se explica: “Acontece que a mulher que floriu meu caminho / de ternura, meiguice e carinho / sendo a vida do meu coração / compreendeu e abraçou-me dizendo a sorrir / meu amor, você pode partir / não esqueça do teu violão”...

Em seguida ela, além de recebe-lo de volta de sua longa boemia, já o despacha: “Vá rever os teus rios, teus montes, cascatas / vá cantar em novas serenatas / e abraçar teus amigos leais”

Enfim, se entendi direito, ele torna a voltar pra boemia depois de voltar pra casa, pois “aconteceu” algo com a mulher, senão por que ele voltaria para ela se estava tão feliz longe? E a mulher “compreende”, sabe-se lá o que, e abraça, sendo o abraço símbolo de perdão.

Ou seja: ele volta para a mulher que deixou e ela “compreende” mas o manda de volta enfaticamente: “vá embora”, como se o despachando mesmo, embora contraditoriamente emendando que “me resta o consolo e a alegria / de saber que depois da boemia / é de mim que você gosta mais”...

Assim, é o maior dos perdões, tanto de um quanto de outro, ela perdoando e mandando ele de volta pra boemia, e ele perdoando seja lá o que ela fez e deixando tudo do mesmo jeito, ele com a boemia e ela sozinha (ou talvez com outro?).

Acabei de falar, as duas moças ficaram me olhando, se olharam, aí uma perguntou por que tinha eu de prestar atenção na letra, e a outra: pois é, a gente gostava dessa música...

Depois, quando comiam o bolo, ouvi uma falando entredentes a outra: - Tem gente que gosta de ser “desmancha prazer”...

E continuei sem entender essa história do Adelino, mal contada por ele ou por mim mal compreendida, além do mistério adicional da sobrevivência, pois de que viveria tal boêmio?

Mas pra quem canta sem dar atenção à letra, é um belo samba-canção. Ou samba-confusão.