“São 25 alunos muito unidos que estão passando por esse processo. O impacto, a demonstração de amor foram surpreendentes",, afirma a professora Cristina Sibaldelli
“São 25 alunos muito unidos que estão passando por esse processo. O impacto, a demonstração de amor foram surpreendentes",, afirma a professora Cristina Sibaldelli | Foto: Ricardo Chicarelli - Grupo Folha

“Fazia tempo que o pato sentia que algo não ia bem.”

“- Quem é você e por que fica andando atrás de mim?”

“- Ainda bem que você finalmente percebeu – disse a morte – Eu sou a morte”

O livro “O Pato, a Morte e a Tulipa”, de Wolf Erlbruch, aborda o fim da vida de forma lúdica. Ele foi lido para as crianças da Escola Municipal Cláudio de Almeida e Silva, jardim Atlanta (zona sul de Londrina), como apoio ao luto coletivo que os alunos vivem desde a perda trágica de um amigo de 9 anos no dia 13 de setembro, uma sexta-feira. Nas últimas semanas, mortes envolvendo crianças estiveram em destaque na região. Afogamentos, queimaduras, colisão de automóvel, alguns chocaram ainda mais por terem sido provocados por pessoas próximas das vítimas. Em âmbito nacional, o caso da menina Ágatha (que levou um tiro de fuzil nas costas, no Morro do Alemão, no Rio) comove um País inteiro. Se para os adultos é difícil assimilar, como lidar com o luto de crianças que conviviam com as vítimas e que pouco sabem da vida, mas já têm que confrontar a morte?

No retorno das aulas, o silêncio incomum que uma turma na faixa dos nove anos nunca havia manifestado chamou a atenção da professora. Era preciso falar sobre a morte do amigo, ocorrido em uma colisão de carro, juntamente com o pai . “Quando eu cheguei na sala de aula foi terrível, pior do que imaginava. A reação deles me surpreendeu muito. Uma criança não conseguiu entrar na escola, outra não veio, preferiu ficar em casa no primeiro dia. Os que vieram, entraram na sala em silêncio, olhando a carteira dele vazia”, menciona a professora Cristina Sibaldelli, também consternada.

A situação preocupante era prevista pela coordenadora pedagógica Ana Paula Furumiti. “Nós duas fomos ao velório no sábado e depois eu liguei para a SME (Secretaria Municipal de Educação) pedindo ajuda na escola, porque eu não sabia o que fazer quando retornássemos”, comenta. Como apoio, psicóloga e psicopedagogas da secretaria foram até o local para trabalhar com as crianças. Naquela manhã de segunda-feira, cada criança pôde se manifestar, contando o que sentia. Foi nesse dia que elas leram o livro mencionado no início da matéria.

De acordo com a psicóloga Ana Paranzini, o luto infantil é mais complexo, pois as crianças ainda não entendem o conceito de morte. “Quando muito pequenas, elas ainda não sabem o que é. Cada uma vai reagir de uma forma diferente, tem que observar e respeitar, algumas não vão querer falar sobre o assunto e é preciso ter esse momento de respeito. Mas é importante que se fale sobre isso, é preciso digerir aquela informação, importante falar, reviver, se permitir viver o momento de tristeza, raiva, saudade, dor”, aponta.

Diante da situação, a professora do departamento de psicologia da UEL (Universidade Estadual de Londrina), Patrícia Silva Lúcio, decidiu prorrogar o projeto sobre compreensão leitura/oral que aplicava na escola e se colocou à disposição para atender as crianças. Ela e mais quatro pesquisadoras vão promover quatro encontros semanais com os alunos, um deles envolvendo os pais. “A criança pode ter dificuldade de entender o que está sentindo. A ideia é fazer uma intervenção breve, como sessões para elaborar o luto. A gente não pode ir embora e deixar a escola, mesmo não sendo o objetivo do projeto, é uma responsabilidade social”, aponta. Os encontros foram nomeados de “Terça do Sentimento”.

Na primeira experiência, as crianças produziram um cartaz em homenagem ao amigo. Esse processo foi uma maneira de abordar a morte de forma mais leve, com expressão através de pinturas e música. O cartaz com os dizeres “E agora você solta pipa no céu...”, está pendurado na entrada da escola. “Foi um processo de recordação bom, acionando memórias dessas crianças e elaborar conjuntamente um trabalho coletivo. As crianças se expressam no desenho, é uma forma para poder criar essa representação. Todas participaram e fizeram o desenho”, comenta Lúcio.

A escola também enfrenta o próprio luto pela perda de um aluno e tenta auxiliar os pais. “Alguns pais ligam para saber como estão e falam: ‘eu não sei o que eu faço!’, porque os filhos querem uma explicação, uma solução; e também têm muitas dúvidas se a pessoa fica invisível, vira fantasma, então nós pretendemos fazer um trabalho com os pais também”, indica a coordenadora.

Essa é a primeira vez que a escola enfrenta um momento como esse e está caminhando para que todas as crianças entendam a morte como parte do ciclo da vida e possam seguir em frente, sem traumas. “São 25 alunos muito unidos que estão passando por esse processo. O impacto, a demonstração de amor foram surpreendentes, agora estamos aplicando atividades diferentes e tentando voltar à rotina”, afirma a professora. Com o apoio da escola, das psicólogas e dos pais, acredita-se que as crianças poderão passar por essa situação de maneira saudável e respeitosa.

Crianças produziram um cartaz em homenagem ao amigo; processo é uma maneira de abordar a morte de forma mais leve, com expressão através de pinturas e música
Crianças produziram um cartaz em homenagem ao amigo; processo é uma maneira de abordar a morte de forma mais leve, com expressão através de pinturas e música | Foto: Ricardo Chicarelli - Grupo Folha

FICAR PERTO DOS FILHOS

A zeladora Lucia Lina de Oliveira, 38, está passando pelo desafio de tentar abordar o luto com a filha Gabriela, de nove anos, que perdeu o amigo recentemente. Para ela, a situação é bem difícil, já que é a primeira vez que a filha lida com a perda. “Sei que ela entende o que aconteceu, mas ela nunca passou por isso, nem com bichinho de estimação, então é a primeira vez e de uma forma bem forte, muito próxima, porque eles eram bem apegados”, comenta a mãe.

A menina é uma das alunas da escola que está passando pelo processo de compreensão da situação. Além de estudar com o amigo, os dois brincavam juntos durante o dia. Uma perda difícil de lidar e um desafio grande para a mãe que quer dar apoio, mas não consegue ter acesso. “Eu converso bastante com ela, mas ela não gosta de tocar no assunto. Eu tenho uma filha mais velha, de 20 anos, que está me ajudando, tentando mostrar que também está disposta a ouvir”, comenta a mãe.

Diante dessa situação, a zeladora agradece que a escola tenha essa preocupação de promover ações com as crianças, pois acredita que a filha pode encontrar apoio em outras pessoas sob a observação de quem entende sobre emoções e sentimentos. “Eu acredito que seja um momento dela que ela está passando, acho que criança sente mais a perda. Então, eu penso que se ela não quiser se abrir com a gente, é bom que ela esteja interagindo com as pessoas na escola para poder buscar orientação. Porque ela conversa normal com a gente, mas não quer falar sobre a morte em si”, fala a mãe.

Ter espaço para discutir a morte e o luto na escola pode abrir as portas para que ela e outras crianças encontrem o caminho para se expressarem e passarem por essa situação de maneira saudável. Enquanto isso, a mãe respeita o tempo da filha e se põe à disposição para quando ela quiser falar. “A gente tem que ficar mais perto dos filhos, não dá para parar a vida, mas tem que dar apoio", defende Oliveira.

DA FORMA MAIS NATURAL POSSÍVEL

Falar sobre a morte sempre foi um tabu, mas segundo a psicóloga Ana Paranzini, de Londrina, é preciso que os pais abordem o assunto com as crianças desde pequenos, mesmo que de forma simples, quando se trata da morte de uma planta ou animal. “As pessoas nascem, crescem, se relacionam e depois vão para algum lugar. Tem que tentar mostrar isso da forma mais natural possível, que isso vai acontecer com todo mundo”, afirma.

Crianças com idade de três a seis anos já começam a entender esse ciclo; a partir de quatro anos começam a ter medo da morte, porque já conseguem entender o que ela significa. “Então, você pode contar, mas deixando o sentimento vir à tona para que ela se expresse sem julgamentos”, acrescenta.

Imagem ilustrativa da imagem Escola municipal de Londrina recebe apoio para crianças em luto

ESPIRITUALIDADE

A psicóloga explica que a família também pode aproveitar o momento para ensinar as crenças que são particulares de cada um. Lino Batista de Oliveira, coordenador do curso de teologia da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), conta que é possível trabalhar o luto incluindo a espiritualidade. “A naturalização é a melhor explicação da morte e a fé na eternidade é o melhor dos consolos e o que mais faz bem. Tem que ser feito de acordo com cada religião e cada uma tem uma doutrina sobre a vida após a morte”, aponta. Para ele, é nesse momento da morte que a fé acaba cumprindo sua maior função. “O maior consolo é exatamente passar essa ideia de que a morte é uma passagem e não o fim”, defende.

FUNERAL

Por isso, passar pelo ritual do funeral pode ser importante. Apesar de muitos evitarem de levar seus filhos, as crianças podem participar de um funeral desde que estejam cientes do que vão encontrar por lá. “Explicar como vai ser e perguntar se ela quer ir. Nunca forçar dar beijo de despedida, se ela nem quiser chegar perto do caixão, tudo bem”, defende Paranzini.

EMOÇÕES

“Muitas vezes os pais acham que a criança não está sofrendo porque está no quarto brincando, mas isso não quer dizer que ela não esteja sentindo”, afirma a psicóloga. Por isso, é importante estar sempre atento ao acolhimento e deixar que a criança expresse o que está sentindo para que não fique reprimido.

MENTIRAS

Criar histórias sobre a morte não vai ajudar. “Quem for contar tem que ser da confiança da criança e usar uma linguagem simples e direta, ser honesta e evitar metáforas. ‘O vovô ou a vovó estão dormindo para sempre’, isso vai fazer com que a criança tenha medo de dormir e não voltar. ‘A vovó virou uma estrela’, talvez não seja bacana, porque pode botar na criança uma vontade de querer se tornar uma estrela, como a vovó”, menciona Oliveira.

MEMÓRIA

Não é ruim deixar que a criança tenha recordações da pessoa que faleceu. “Tem gente que tira todos os porta-retratos da casa, mas isso não é saudável. Tem que deixar ali, quando a criança sentir saudade, ir lá beijar, deixá-la lembrar, acolher esse sentimento”, comenta a psicóloga. “A relação da criança com o falecido não acabou, ela mudou. Por isso é importante deixar que ela tenha contato com as fotos, lembranças, porque é uma relação que não acabou, isso faz bem, o processo tem que ser lento”, acrescenta o coordenador.